por Philippe Ambrosio Castro e Silva

Nas últimas semanas, em meio à pandemia deflagrada pela disseminação da covid-19 (novo coronavírus), o mundo globalizado tem sentido os temores concretos de uma grave recessão nos diversos setores da economia.

Por força das incertezas provocadas pela paralisação das atividades econômicas nas mais variadas áreas, em decorrência de medidas de isolamento social impostas pelos governos mundo à fora, a economia já tem começado a manifestar os primeiros sinais da desaceleração brusca que inevitavelmente se poderia esperar de um evento dessa magnitude.

Dentre os setores da economia atingidos se encontra o setor elétrico, que, especificamente no Brasil, tem sofrido severamente com sucessivas crises ao longo da presente década, seja por medidas intervencionistas precipitadas e mal planejadas, seja pela última e recente recessão econômica enfrentada pela economia brasileira, seja por fatores climáticos que impactaram significativamente geradores hidrelétricos anos atrás, seja pela intrincada, complexa e até mesmo defasada legislação que regula o setor, a qual vem estimulando uma crescente judicialização nas mais variadas relações jurídicas sustentadas pelos agentes setoriais.

No caso específico da presente crise que se avizinha, conforme salientado, os primeiros sinais já têm sido demonstrados, tendo em vista a forte redução no consumo de energia em todo o Brasil, em especial por conta da interrupção total ou parcial da atividade industrial.

Tal circunstância já tem provocado movimentações entre os agentes setoriais, sobretudo por parte de grandes consumidores livres que têm se visto impossibilitados de exercer suas atividades e, assim, de consumir os volumes de energia contratados, o que acabará por criar sobras de energia que serão invariavelmente vendidas no mercado spot por preços muito inferiores àqueles praticados em seus contratos.

Situação similar vem ocorrendo com concessionárias distribuidoras de energia, que inevitavelmente não terão a quem suprir os montantes de energia contratados, de modo a ficarem também com sobras significativas de volumes de energia.

Tudo isso, por sua vez, já tem iniciado uma corrida entre os agentes setoriais por meio da invocação de cláusulas de força maior em seus contratos com comercializadores e geradores, a fim de se eximirem do cumprimento de suas obrigações de pagamento aos respectivos vendedores de energia, fato que, por seu turno, tem o condão de criar um efeito cascata de disputas setoriais em procedimentos de arbitragem e mais uma onda de judicialização no setor elétrico, uma vez que comercializadores e geradores também seriam prejudicados com sobras de energia ou com o não cumprimento de seus contratos pelos respectivos compradores, afetando, assim, o equilíbrio-econômico financeiro de suas relações contratuais.

Nesse contexto, compete salientar que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recente e rapidamente editou a Resolução Normativa nº 878/2020, que dispõe sobre as medidas para preservação da prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, em decorrência da calamidade pública atinente à pandemia do novo coronavírus.

A norma em questão versa essencialmente sobre medidas que buscam desonerar e garantir a prestação do serviço de distribuição aos consumidores cativos, que se verão imersos, em grande parte, a dificuldades em arcar com suas obrigações para com as respectivas distribuidoras.

No entanto, em virtude de a deflagração da pandemia e de seus efeitos serem bastante recentes, a agência reguladora ainda não foi capaz de criar mecanismos normativos destinados a dirimir as controvérsias que certamente advirão no futuro próximo, sobretudo entre os agentes de geração, de comercialização e de distribuição.

Assim, na condição de agência reguladora que detém a competência fixada em lei para mediar e resolver os conflitos entre os agentes do setor elétrico, caberá à Aneel zelar pela preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos mantidos pelos agentes setoriais — em especial daqueles que se encontram na “ponta” inicial da cadeia de consumo, isto é, dos agentes geradores —, mediante a adoção de medidas capazes de sanar o possível déficit em suas receitas por conta da invocação de circunstâncias de força maior em seus contratos de comercialização de energia, assim como mitigar possíveis impactos negativos setoriais relacionados com o risco hidrológico (GSF) — para geradores hidrelétricos —, em função de despachos do Operador Nacional do Sistema (ONS) que venham a determinar a redução da geração.

Com isto, evitar-se-á o agravamento das dificuldades econômicas enfrentadas ao longo das últimas e recentes crises setoriais, de modo a não afugentar ainda mais aqueles que pretendem empreender no setor.

Do contrário, uma nova onda de litígios de arbitragem e judiciais surgirá, cabendo ao Poder Judiciário, por omissão da Aaneel, zelar pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos das partes que dele venham a se socorrer, muitas vezes, porém, em detrimento dos interesses de todos os demais agentes setoriais, circunstância que sabidamente tem desafiado o exercício da atividade econômica no setor elétrico nacional.

 

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 30.03.2020.