Por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
Embora sem muito detalhamento, a Lei Federal nº 13.140/2016, que trata da mediação enquanto método alternativo de solução de conflitos, previu no parágrafo único do seu artigo 33 a possibilidade de que a Advocacia Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, onde houver, instaurasse, de ofício ou mediante provocação, procedimento de mediação coletiva de conflitos relacionados à prestação de serviços públicos.
Colocada como uma novidade do ponto de vista normativo geral, a possibilidade de mediação coletiva de conflitos já podia ser visualizada em algumas esferas específicas — tal como no Direito Trabalhista e no âmbito de agências reguladoras —, tratando-se de um procedimento administrativo específico e direcionado aos conflitos individuais ou coletivos envolvendo principalmente os usuários (consumidores) desses serviços, sejam eles prestados de forma direta pelo Estado ou sob o regime de concessão.
Vantagens e obstáculos
Conforme o texto do Substitutivo Projeto de Lei nº 7.169 de 2014, que antecedeu a norma, as vantagens deste procedimento estariam na possibilidade de “1) solução dos problemas identificados de forma coletiva e célere; 2) participação dos consumidores de serviço público por meio das associações na construção da solução consensual, o que possibilita uma composição que atenda efetivamente os interesses da população, que é a destinatária do serviço público; 3) diminuição do número de demandas judiciais; etc.”. Trata-se, de fato, de instrumento com potencial capacidade de redução da demanda judicial, bastante onerada com ações que discutam esse tipo de atividade, notadamente quanto à sua qualidade.
Apesar da aptidão do instrumento para reduzir as reclamações relacionadas a serviços públicos — especialmente aqueles usados por uma ampla gama de consumidores, tais como o fornecimento de água, energia elétrica, telefonia móvel etc. — e possíveis vantagens daí advindas, ainda são poucas as experiências mais consistentes. Parte dessa dificuldade de operacionalização pode estar relacionada à própria ausência de uma disciplina mais completa, que poucas vezes é visto como um espaço para a inovação, mas encarado como entrave por parte da administração pública.
O receio pode ser compreendido pela própria discussão de legalidade pela qual muitos métodos de solução alternativa de conflitos passaram quando adaptados a discussões integradas por órgãos e entidades públicas. A recorrente alegação de que os conflitos com a administração pública envolvem a presença de direitos indisponíveis e, consequentemente, a impossibilidade de negociação, pode ser um desestímulo a que se pense em novas formas de se empregar mecanismos de composição.
Por outro lado, especificamente com relação aos serviços públicos, esse debate parece ficar em segundo plano. O atendimento a padrões de qualidade e a modicidade das tarifas praticadas são premissas legais há muito consolidadas em nosso sistema, de modo que a solução de conflitos geralmente atinente a esses aspectos está longe de ser um interesse disponível e ainda quando atinja grupos específicos de usuários não desborda do interesse público geral de oferta de serviços de qualidade, sejam eles delegados ou não à iniciativa privada.
As vantagens, em nossa visão, superam os riscos da inovação. Além da celeridade nas respostas e a economia de recursos imediatamente visualizados em se resolver qualquer conflito pela via administrativa (ou não jurisdicional), ainda é possível citar como possíveis vantagens desse tipo de composição a possibilidade de se pensar em soluções adaptadas ao caso concreto, uma melhora no relacionamento público-privado e aumento na confiança do cidadão, a ampliação da participação social, o fomento a uma cultura dialógica com o poder público, e, claro, a redução da sobrecarga do Judiciário.
Em termos de experiência do instituto, Luciane Moessa de Souza destaca que o instrumento vem sendo usado pela Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs) desde 2010, destacando como assuntos debatidos com maior frequência a “apuração de fraudes no medidor de energia elétrica, furto de energia elétrica e ressarcimento de danos por interrupção de serviço de fornecimento de energia elétrica” [1]. Os dados coletados pela autora demonstram índice positivo de efetividade do mecanismo na solução de controvérsias, com um número bastante reduzido de casos em que as concessionárias optaram por recorrer ou judicializar o conflito.
Ainda no âmbito da regulação, Kátia Junqueira ressalta, principalmente, a experiência de agências federais [2]. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que possui, inclusive, órgão próprio para tratar do tema (a Superintendência de Mediação Administrava Setorial), realiza cerca de 30 mediações anuais, das quais 90% alcançam algum acordo. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) também possui experiência destacada no tema, especialmente em temáticas concorrenciais. É, por fim, realçado o papel da Agência Nacional de Águas (Ana) em conflitos envolvendo o uso da água seja para fins de navegação ou abastecimento para fornecimento de energia elétrica.
Por outo lado, analisando casos apreciados pela Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), Silvia Di Salvo destaca que “a estatística revela que conflitos relacionados a políticas públicas e direitos sociais coletivos ainda são tratados marginalmente no que se refere à autocomposição, o que revela que a Administração Pública ainda não foi capaz de assimilar a mediação como instrumento transformador de sua relação com os administrados” [3]. O dado releva que a administração federal, conquanto muitas vezes mais estruturada em termos institucionais, ainda não reporta experiências de peso, o que certamente impacta as demais esferas federativas, dado seu caráter indutor de soluções jurídicas.
Ainda que não ligado a serviços públicos, mas enquanto experiência de mediação coletiva, importante destacar a regulação, pelo município de São Paulo, quanto à possibilidade de solução de conflitos envolvendo o uso e ocupação do solo, em complemento às disposições do Plano Diretor Estratégico Paulistano. De acordo com o Decreto nº 43.384/2003, munícipes reunidos em grupos ou associações podem propor à Subprefeitura a solução de conflitos relacionados ao espaço urbano, o qual será submetido e amplamente discutido em audiência pública, permitindo, inclusive, debates sobre a necessidade de alteração de legislação, a ser posteriormente submetida à Câmara dos Vereadores.
Tem-se, assim, que de forma ainda não pavimentada, a Lei Federal nº 13.140/2016 forneceu a abertura para o aprimoramento da mediação na administração pública também para matérias de conflitos coletivos relacionados à prestação de serviços públicos, cujas experiências, ainda pontuais, evidenciam um relevante espaço de inovação e experimentação de métodos alternativos de solução de conflitos envolvendo o poder público.
[1] SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos: negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. p. 348.
[2] JUNQUEIRA, Kátia Valverde. Mediação – Instrumento eficaz para a eficiência regulatória. Revista EMERJ, V. 14, n. 56, p. 116-117, 2011.
[3] DI SALVO, Silvia Helena Picarelli Gonçalves Johonsom. Mediação na Administração Pública: O desenho institucional e procedimental. São Paulo: Almedina, 2018, p. 140.
Publicado no ConJur.com