por Joaquim Augusto Melo de Queiroz e Diogo Albaneze

A utilização da arbitragem, como meio adequado de solução de litígios, vem se fortalecendo e se expandindo no Brasil, sobretudo em questões envolvendo o poder público e setores regulados.

O setor de energia elétrica, muito provavelmente pela sua complexidade, foi um dos pioneiros a prever, de forma expressa, o cabimento do instituto da arbitragem. Com a entrada em vigor da Lei nº 10.848/2004, que dispõe sobre a comercialização de energia elétrica, a arbitragem foi incorporada ao setor, sendo, inclusive, de aplicação compulsória em determinados litígios entre os agentes integrantes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

Faz sentido que a arbitragem seja uma alternativa no cardápio de mecanismos de resolução de disputas à disposição dos agentes

Seguindo nessa esteira e reconhecendo as virtudes do procedimento arbitral, novamente o setor de energia vem buscando o fortalecimento do instituto e a ampliação da sua utilização, dessa vez no âmbito dos contratos de uso do sistema de transmissão (Cust).

Em síntese, os contratos de uso do sistema de transmissão estipulam os termos e as condições que irão regular o uso da rede (rede básica) pelos usuários do sistema de transmissão, especialmente geradores, distribuidores e determinadas unidades consumidoras. Esses instrumentos contratuais são dotados de feição eminentemente técnica, disciplinando a prestação dos serviços de transmissão pelas empresas concessionárias aos usuários mediante a coordenação, o controle e a supervisão do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

Adicionalmente, no âmbito dos contratos de uso do sistema de transmissão, cabe ao ONS a administração, a cobrança e a liquidação dos encargos de uso da transmissão, além da execução do sistema de garantias, atuando em nome das concessionárias de transmissão.

Esses contratos vêm adquirindo especial protagonismo no atual cenário de proliferação de novos projetos de geração de energia voltados ao ambiente de contratação livre, dada a relevância da conexão desses empreendimentos à rede de transmissão. Isso porque os encargos de transmissão representam expressiva parcela dos custos de Opex (operational expenditure) dessas novas usinas – sendo que decisões recentemente proferidas pela Aneel têm deflagrado uma nova onda de judicialização envolvendo os contratos de uso do sistema de transmissão.

Nesse contexto, em 8 de fevereiro, encerrou-se o período de contribuições da 1ª Etapa da Tomada de Subsídios nº 24/2022 realizada pela Aneel. Trata-se de uma fase inicial de estudos e prospecções por parte das áreas técnicas para a compilação de dados e informações sobre temas de interesse da agência.

Na Tomada de Subsídios nº 24/2022, a Aneel colocou em discussão justamente a pertinência de se incluir cláusula arbitral nos contratos de uso do sistema de transmissão. Trata-se de uma discussão pertinente e com potencial de grande impacto nas disputas oriundas desses contratos.

Considerando-se a estrutura técnica e complexa dos contratos de uso do sistema de transmissão, faz sentido que a arbitragem seja uma alternativa no cardápio de mecanismos de resolução de disputas à disposição dos agentes. Não se trata de desprestigiar o Poder Judiciário, mas de reconhecer que o procedimento arbitral – seja pela flexibilidade conferida na escolha de profissionais efetivamente especializados em discussões dessa natureza, seja por outras virtudes do instituto, como a celeridade do processo – pode ser, de fato, o meio mais adequado para solucionar conflitos decorrestes desses contratos.

A adoção da cláusula arbitral nos contratos de uso do sistema de transmissão não desfrutou, todavia, de unanimidade entre os agentes que apresentaram contribuições na tomada de subsídios. Dentre as críticas assinaladas podemos citar: (i) os custos incorridos ao longo de um procedimento arbitral, em comparação aos despendidos em uma ação judicial; (ii) o fato de que a arbitragem não representaria a melhor relação custo/benefício para discussões de menor relevância; e (iii) dúvidas relacionadas à arbitrabilidade objetiva de determinadas controvérsias envolvendo esses contratos.

Alguns agentes ainda suscitaram a tese de condição meramente facultativa da arbitragem (a depender do valor do litígio ou mesmo pelo seu suposto caráter subsidiário em relação à cláusula de eleição de foro judicial). Boa parte dessas críticas carece, no entanto, de conhecimento técnico sobre os efetivos contornos da arbitragem. De todo modo, por se tratar de contribuições veiculadas em tomada de subsídios, etapa ainda preliminar nas discussões sobre a regulação do tema, acredita-se que o debate adquira maior sofisticação em eventual consulta pública.

Por fim, um dos pontos levantados merece reflexão. Nos contratos de uso do sistema de transmissão, o ONS figura como parte representante das transmissoras de energia, além de parte contratante em nome próprio. Eventualmente, em uma controvérsia, pode haver ligeira dissonância entre os interesses do ONS e os das transmissoras, surgindo dúvidas quanto à parte efetivamente legítima no procedimento arbitral. Essa pode ser uma das questões a ser objeto de melhor discussão no âmbito de uma futura consulta pública. Como se pode perceber, trata-se de discussão relevante, cabendo ao setor aguardar o encaminhamento a ser dado pela Aneel.

 

Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 14.04.2023.