por Camillo Giamundo e Gabriela Soeltl

O ano de 2021 pode, certamente, ser considerado um ano desafiador para a arbitragem, enquanto meio alternativo à solução de conflitos. Pontualmente, nos deparávamos com notícias de anulação de sentenças arbitrais pelo Poder Judiciário, fato que, nos últimos anos, acendeu um sinal de alerta para uma possível crise do instituto.

A constatação de que a arbitragem passa por uma reanálise no sistema jurídico brasileiro, para alguns especialistas, foi confirmada em meados deste ano, quando a Arbipedia divulgou um relatório que apontou que 19% das sentenças arbitrais questionadas no Poder Judiciário foram anuladas. Pelo levantamento, também foi revelado um aumento no número de decisões em ações anulatórias na segunda instância nos últimos dois anos, ou seja, em 2019 e 2020, o número de acórdãos foi quase 90% superior à média dos três anos anteriores.

Logo quando divulgado, o estudo dividiu opiniões entre os profissionais da área, que se posicionaram em, ao menos, dois sentidos: (i) o percentual é inexpressivo, considerando, especialmente, que as ações anulatórias estão previstas na Lei Federal nº 9.307/1996, sendo, portanto, parte do sistema arbitral, o que não pode ser confundido como uma tentativa de enfraquecimento do instituto; e (ii) o percentual de 19% é inaceitável, pois, pela regra legal, as decisões arbitrais são imunes à revisão pelo Poder Judiciário.

Tendo uma perspectiva global, o levantamento não trouxe um detalhamento dos motivos pelos quais, por exemplo, o mérito da sentença arbitral é revisitado pelo Poder Judiciário ou quais foram as hipóteses de anulação mais acionadas pelos litigantes. Mesmo assim, embora previstas na Lei Federal nº 9.307/1996 e necessárias à legitimidade do sistema, o controle de validade da decisão arbitral deve ter o seu limite no rol do art. 32 do mesmo diploma, que estabelece as claras circunstâncias de nulidade da sentença arbitral.

O principal receio em relação às ações anulatórias previstas na Lei Federal nº 9.307/1996 é o uso indiscriminado de sua finalidade, com o intuito de utilizar o Poder Judiciário como instância recursal. Nessa hipótese, em que somente o inconformismo é o motor do interesse processual, não há como repensar o papel excepcional do Judiciário no próprio fortalecimento do instituto.

A opção legislativa é de que as sentenças arbitrais podem ser reverenciadas pelo Poder Judiciário, e cabendo a anulação, apenas nos limites estabelecidos pelo art. 32 e pelos princípios previstos no art. 21, §2º, da LARB. No último caso, impõe-se a necessária qualificação jurídica do princípio violado, impedindo que conceitos indeterminados/abstratos e tão fluídos no ordenamento jurídico consigam promover a anulação de uma sentença motivadamente proferida e, pior, substituir a soberania do tribunal arbitral para aplicar o direito no caso concreto.

Sob essa ótica, as ações anulatórias de sentenças arbitrais devem ser repensadas a partir da defesa do instituto não só pelos árbitros e pelas partes, mas, inclusive, pelo próprio Poder Judiciário, a quem cabe uma atuação pontual e dentro dos limites previstos pela lei, sob pena de contribuir com o sério descrédito da arbitragem, notadamente em relação à segurança jurídica do sistema arbitral, possível de ser avaliada por outros fundamentos.

Isso porque, a arbitragem é um sistema consolidado no mundo todo e representa um mecanismo eficiente de solução de conflitos. Quando o Judiciário não cumpre o seu papel e intervém no mérito de uma decisão sem qualquer indício de teratologia e desconformidade com a lei, contribui para o enfraquecimento do instituto, colocando em dúvida a sua validade jurídica, além da confiança no sistema arbitral brasileiro, com repercussões para além das partes litigantes.

Mais: abre-se brecha para que a controvérsia, até então resolvida pelo mecanismo eleito pelas partes, seja alimentada pela cultura do litígio. Aqui, também é preciso destacar o papel das partes, advogados, árbitros e juízes, em relação aos limites de uma ação anulatória de sentença arbitral. É preciso que exista o efetivo compromisso e ciência de que, escolhida a arbitragem, não cabe recurso ao Poder Judiciário, sendo a ação anulatória uma exceção que só será manejada nas específicas hipóteses previstas pelo legislador.

Nesse sentido, garantir que a ação anulatória seja tratada como exceção, também é uma forma de proteger a autonomia da vontade das partes ao decidirem que o litígio será submetido à arbitragem e não ao Judiciário. A intervenção deste Poder para além do previsto pela lei, tornando-se um verdadeiro reflexo de pretensões que queiram rediscutir decisões não favoráveis proferidas pelo tribunal arbitral, elimina essa autonomia, retirando o direito que determinada controvérsia seja resolvida pelo mecanismo mais conveniente.

A pesquisa realizada pela Arbipedia, divulgando que 19% das sentenças arbitrais questionadas no Judiciário Brasileiro foram efetivamente anuladas revela uma alta taxa de interferência no instituto da arbitragem.

Em um comparativo, a Justiça Inglesa divulgou, recentemente, relatório que revelou que nos anos de 2018 e 2019 foram julgados 73 processos questionando procedimentos arbitrais com base em alegações de ilegalidade ou irregularidade, sendo que em apenas três deles os pedidos foram considerados procedentes (4%).

Não se quer dizer que as ilegalidades eventualmente praticadas na arbitragem não possam ser revistas pelo Poder Judiciário. Muito pelo contrário, a ação anulatória é a via pensada justamente para esse fim e garantia. Contudo, certamente há uma parcela considerável, dentro desse alto percentual, de decisões anuladas e que se caracterizam como verdadeira revisão de mérito travestida de suposta ilegalidade ou inobservância aos princípios do instituto.

É justamente nesse ponto que se propõe a consciência e observância aos limites legalmente estipulados para o seu manejo, sob pena de gerar disfuncionalidades em seus objetivos. Trata-se de um compromisso que deve ser assegurado também pelo Poder Judiciário, garantindo que a autonomia das partes, a confiança no processo arbitral e a segurança jurídica de todo o sistema de arbitragem sejam reverenciadas por todos os atores envolvidos (partes, árbitros e juízes), visando o cumprimento das finalidades do processo arbitral, bem como o seu efetivo funcionamento como solução alternativa às demandas judiciais.

Espera-se que, nos próximos anos, a arbitragem se fortaleça e os percentuais de sentenças anuladas pelo Poder Judiciário sejam fiéis e restritos aos casos efetivamente maculados por ilegalidades.