por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
Considerando a amplitude das atribuições previstas no artigo 71 da Constituição Federal, o Tribunal de Contas da União sempre avaliou os atos praticados e os contratos celebrados por empresas estatais, independentemente da natureza assumida, considerando-as, para todos os fins, jurisdicionadas do controle de contas.
No entanto, no final do ano passado, o TCU proferiu precedente de relevo sobre o tema, afastando a sua competência para apreciar atos e contratos de estatais desestatizadas, ainda que o processo envolvesse a apuração de suposto dano ao erário, por considerar que não mais deteria jurisdição sobre a responsável e sobre a matéria tratada nos autos.
O caso envolvia uma auditoria operacional promovida na sociedade de propósito específico Norte Energia S.A. (Nesa), que atuou como concessionária responsável pela construção, operação e manutenção da usina hidrelétrica Belo Monte, cujo controle era detido pela Eletrobras, recentemente desestatizada. O objeto específico do processo TC nº 017.053/2015-3 era a avaliação da regularidade e da efetividade dos controles exercidos sobre investimentos e contratos firmados pela companhia, em especial no que diz respeito à possibilidade de superavaliação de investimentos na UHE Belo Monte.
Em trâmite desde 2015, o processo também apurava fatos relacionados à operação “lava jato”, tendo sido apontados achados relacionados a indícios de falhas de estruturação do leilão de energia, desvio de finalidade na participação societária da Eletrobras na Nesa, ausência de transparência, inconsistências em aditivo celebrado e superfaturamento das obras.
No voto do Acórdão nº 2.158/2023-Plenário, o ministro Antônio Anastasia, relator do processo, asseverou que “a partir da privatização da Eletrobras, materializada em 17/6/2022, houve alteração significativa da conjuntura das empresas envolvidas, que deixaram de fazer parte do rol de unidades jurisdicionadas ao TCU”. Diante dessa ausência de jurisdição, a instauração de tomada de contas especial para apuração dos indícios de superfaturamento e respectiva responsabilização dos envolvidos restaria obstada, em razão da ausência de condições de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo.
Ainda em termos de justificativa do arquivamento dos autos, apontou-se que o dano eventualmente advindo à Eletrobras, que já seria indireto, visto que atuava como acionista da efetiva concessionária dos serviços, passaria a ser de segunda ordem, uma vez que a União, após o processo de desestatização, deteria participação minoritária na companhia.
Também restou afastada nesse acórdão a responsabilidade que eventualmente poderia subsistir aos gestores, relativamente a atos praticados anteriormente à desestatização, por força de outro precedente sobre o tema (Acórdão nº 1.134/2023-Plenário), no qual restou consignada a possibilidade desse tipo de apuração. No caso de ex-gestores da Nesa e Eletrobras, a falta de apuração decorreu de circunstâncias fáticas do caso concreto, visto que os achados de auditoria se sustentavam em fatos ocorridos ainda em 2010, sobre os quais sequer havia sido elaborada matriz de responsabilização.
O precedente em questão, que tratou especificamente da possibilidade de instauração de processos de tomada de contas especial em vista do superveniente processo de desestatização da Eletrobras, fixou o entendimento de que após a desestatização “deixam de existir os pressupostos de constituição e de desenvolvimento de TCE no intuito de obter reparação de dano, seja daquele diretamente sofrido pela sociedade empresária, seja daquele direta ou indiretamente sofrido pelo acionista estatal federal”. Por outro lado, estabeleceu-se que os gestores poderiam eventualmente ser sancionados pelo TCU em razão de condutas irregulares praticadas antes da desestatização, assim como terem suas contas julgadas irregulares (desde que no prazo prescricional).
Ponto de destaque desse acórdão está no voto do ministro Benjamin Zymler, relator do processo, em que se faz um relevante escorço histórico pela jurisprudência da Corte de Contas federal, resgatando precedentes desde a década de 90 até período mais recente, nos quais o TCU conteve sua atuação em razão dessa superveniente perda de jurisdição. São citados, nesse sentido, casos envolvendo conhecidas estatais privatizadas, tais como a Cosipa e a Telesp, no estado de São Paulo [1]; diversas empresas do setor de telecomunicações, nas privatizações do início dos anos 2000 [2]; e mais recentemente da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras [3].
Assim, embora não discutida com muita frequência, a matéria resta consolidada no TCU, que em relevante postura de contenção e mesmo de economia de recursos públicos circunscreve sua atuação e esforços a casos em que há efetivo risco ao erário, sem implicação ao controle adequado, que fica sob o exercício dos acionistas e interesse privado, não compatível com a atuação da Corte de Contas [4].
O posicionamento, por fim, também se coaduna ao regime atualmente idealizado para as empresas estatais que, não obstante ainda se submetam ao influxo de normas do Direito Público, principalmente nos casos em que sua atuação esteja mais voltada aos serviços públicos, são cada vez mais aproximadas de um regime de Direito Privado e às diferentes regras de compliance que reduzem a necessidade de atenção do controle externo.
[1] Acórdãos 4/1994-2ª Câmara (min. Lincoln da Rocha), 59/1995-Plenário (mi. Fernando Gonçalves) e 161/1995-Plenário (min. José Antônio de Macedo), referentes à Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), bem como o Acórdão nº 196/1999-Plenário (min. Valmir Campelo), referente à Telecomunicações de São Paulo S.A. (Telesp).
[2] Conforme Acórdãos 295/2000-2ª Câmara (min. Ademar Ghisi), 351/2000-2ª Câmara (min. Adylson Motta), 430/2000-2ª Câmara (min. Valmir Campelo) e 240/2000- Plenário (min. Adylson Motta), referentes à Telecomunicações de Goiás S.A. (Telegoiás), da Telecomunicações do Ceará (Teleceará) e da Telecomunicações de Sergipe S.A. (Telesergipe).
[3] Acórdão 3.079/2020-Plenário (min. Augusto Nardes).
[4] Como bem destacado no voto, a temática permanece sob o controle de entidades de regulação privada, a exemplo da Comissão de Valores Mobiliários, além da atuação do Ministério Público Federal.
Artigo originalmente publicado no Portal ConJur, em 10.01.2024.