por Giamundo Neto Advogados | nov 22, 2023 | Artigo
Por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
De caráter muitas vezes técnico, os processos de fiscalização conduzidos pelos tribunais de contas são demarcados por uma linguagem própria, que envolve não somente o debate legal ou normativo sobre a ação pública, mas também aspectos contábeis, financeiros, orçamentários e de engenharia que fogem à análise de mera subsunção legal. Por decorrência, a prova produzida nesses processos não é de simples adequação normativa, mas de efetiva demonstração de elementos que envolvem diferentes áreas do conhecimento científico.
Nesse sentido, os contornos da prova produzida nos processos conduzidos pelos tribunais de contas — aqui compreendidos desde as auditorias de atos e contratos até as prestações de contas de gestão — são diversos e, muitas vezes, superam a demonstração documental, demandando um conhecimento especializado de determinadas temáticas de cunho técnico. Essa realidade está especialmente presente nas auditorias de contratos de engenharia, que não raramente envolve tanto um conhecimento próprio da engenharia de custos e aplicação de referenciais de preços, como também da engenharia civil, relativamente à adequação do custo àquela atividade precificada.
Tem-se assim, em muitos casos, a necessidade de se produzir uma prova de natureza técnica que, em algumas situações, acaba por se assemelhar a uma prova pericial, visto que envolve o conhecimento técnico em dada área/temática, a análise pormenorizada de elementos igualmente técnicos e um terceiro imparcial responsável por essa avaliação. Essa prova contrapor-se-ia, em termos técnicos, às avaliações realizadas pelas unidades de fiscalização dos tribunais de contas, geralmente dotadas de relevante especialização nas temáticas para as quais voltadas e que, por isso mesmo, usam uma linguagem nem sempre apreensível pelos gestores públicos e demais jurisdicionados.
Nesse contexto, a produção de documentos técnicos e o debate qualificado entre profissionais detentores de um mesmo conhecimento científico acabam por criar um cenário em que a prova técnica — ou pericial se assim preferível denominar — estão diretamente conectadas ao próprio direito ao contraditório e à ampla defesa. O debate jurídico, como mencionado, acaba sendo secundário e por certo desprezado se dissociado de elementos técnicos comprobatórios das alegações.
Apesar da relevância dessa temática, são poucos os tribunais de contas que permitem expressamente em seus normativos a produção da prova técnica, especialmente aquele de natureza pericial, assim entendida a que envolva um terceiro imparcial opinando tecnicamente sobre determinada matéria. Pelo contrário, é recorrente o entendimento de que o processo de controle não prevê esse tipo de prova [1].
Veja-se que, embora se desconheça qualquer vedação ou inadmissão por parte dos tribunais de contas para o recebimento da prova de caráter técnico na forma documental — a qual, de qualquer forma, estaria contemplada pela cláusula geral do devido processo legal —, essa espécie não necessariamente contemplará a complexidade necessária ao esclarecimento da matéria posta em debate. Em verdade, essa é a questão central. Não há efetivo debate, sendo os trabalhos técnicos recebidos como um elemento documental adicional, sem o mesmo peso de um laudo pericial.
Ainda, a questão da regulamentação do tema no âmbito das cortes de contas — bastante reduzida, como mencionado — é mais do que um simples detalhe, visto que confere segurança à parte para que possa se valer dessa prerrogativa de forma efetiva e sem limitações. Por outro lado, na atualidade, apenas cinco tribunais de contas possuem alguma disposição específica sobre o tema [2], com especial destaque para o Tribunal de Contas dos municípios do Pará [3] e o Tribunal de Contas do Município de São Paulo [4], que possuem regulação mais exaustiva sobre o tema, e para o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro [5], que autoriza a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.
Com efeito, a falta de previsão normativa adequada ou o indeferimento desse tipo de prova sob o pretexto de que se coloca como medida dispensável, acaba por levar à desnecessária judicialização [6]. Sobre o tema, inclusive, o Supremo Tribunal de Federal possui relevante precedente em sede de mandado de segurança impetrado em face de decisão do Tribunal de Contas da União, em que consignou a impossibilidade de indeferimento de prova pericial fundamentadamente requisitada pela parte enquanto mecanismo constitucional de defesa [7].
Por outro lado, a aceitação da prova pericial torna mais segura e certeira a decisão para o próprio órgão controlador, garante a plenitude de defesa ao seu jurisdicionado e, sobretudo, dá ensejo a um diálogo mais qualificado, que permita que também a parte ou responsável possa contrapor os argumentos e elementos técnicos produzidos pelas cortes de contas em sua inegável especialização. Nem mesmo eventual malefício da redução da celeridade seria pertinente como argumento contrário a esse tipo de prova, na medida em que a tecnicidade já é inerente aos processos de controle.
Por fim, a viabilização desse tipo de prova, mesmo para os tribunais que não a tenham previsto de forma expressa, pode se sustentar na aplicação subsidiária ou supletiva das disposições do Código de Processo Civil, como afinal autoriza a próprio diploma processual [8], adaptando os procedimentos judiciais às peculiaridades do processo de controle, como se já vem fazendo com diversos outros institutos dessa natureza[9], não havendo, como pontuado, empecilhos procedimentais que efetivamente impeçam essa ampliação da fase probatória no âmbito dos tribunais de contas.
NOTAS
[1] Nesse sentido, vide enunciado disponibilizado pelo Tribunal de Contas da União: “O processo de controle externo, disciplinado pela Lei 8.443/1992 e pelo Regimento Interno do TCU, não prevê a produção de prova pericial, cabendo ao responsável trazer aos autos os elementos que entender necessários para sua defesa, inclusive laudos periciais, o que prescinde de autorização do Tribunal” (TCU. Acórdão nº 5.040/2022 – 2ª Câmara, Relator Ministro Bruno Dantas, Sessão de 06/09/2022).
[2] São os casos das disposições dos regimentos internos do TCE-AL (art. 129, III), do TCE-PA (art. 77), TCM-PA (art. 454), TCM-RJ (art. 138) e TCM-SP (art. 124).
[3] Cf.: “Art. 454. (…) § 1º. A requerimento do responsável, do Ministério Público de Contas dos Municípios do Estado do Pará ou de terceiro interessado, bem como por proposição do Relator, observada a complexidade da matéria ou a especificidade da prova a ser produzida ou apreciada, proceder-se-á com a realização de perícia técnica ou científica especializada. § 2º Em quaisquer das hipóteses fixadas no § 1º deste artigo, competirá ao Tribunal Pleno, a autorização para realização de perícia. § 3º Na apreciação do requerimento de produção de prova pericial, deverão ser observados, impositivamente, a sua imprescindibilidade para apuração dos fatos; a complexidade e especificidade da matéria e, ainda, a inexistência de técnicos habilitados, no âmbito do TCMPA, para apreciação e/ou produção da prova. § 4º Aplicar-se-á, no âmbito do TCMPA, quanto ao requerimento e demais procedimentos periciais, quando deferidos pelo Tribunal Pleno, as regras fixadas nos artigos 464 a 480, do Código de Processo Civil Brasileiro, exceto quanto às custas e honorários periciais. § 5º As custas e honorários periciais serão suportados pela parte requerente, a qual será instada a efetuar seu pagamento, no prazo máximo de 10 (dez) dias, sob pena de desistência tácita do pedido de produção de prova”.
[4] Cf.: “Art. 124 – A critério do Relator ou Juiz Singular, integrarão a instrução processual todos os elementos necessários ao julgamento dos feitos, a saber: I – a documentação referida no artigo 2º, § 1º, deste Regimento; II – a inspeção pessoal efetivada pelo Conselheiro ou por funcionário por ele especialmente designado; III – os dados e relatórios de auditorias, acompanhamentos, inspeções e análises; IV – os pareceres dos órgãos técnicos do Tribunal; V – o depoimento pessoal das partes; VI – a oitiva de testemunhas; VII – a juntada de documentos; VIII – a exibição de documento ou prova material; IX – o laudo pericial; X – todas as demais provas admitidas em direito”.
[5] Cf.: “Art. 138. As provas que a parte quiser produzir perante o Tribunal devem ser, preferencialmente, apresentadas de forma documental, mesmo as declarações pessoais de terceiros.§ 1º Quando requeridas diligências e perícias pela parte, serão aplicadas, no que couber, as disposições do Código de Processo Civil. § 2º As provas propostas pela parte somente poderão ser recusadas pelo Tribunal, mediante decisão fundamentada, quando forem ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.
[6] Nesse sentido, vide decisão do TRF5, questionando a limitação à prova pericial no âmbito do TCU: “Outrossim, analisando-se a Tomada de Contas Especial n.º 021.409/2003-4, é possível perceber que a demandante, reiteradas vezes, requereu a realização de perícia técnica com profissional especialista em portos, nos termos determinados pelo próprio TCU no Acórdão n.º 1051/2003- Plenário, tendo seus pedidos sumariamente negados, sob o argumento simplista de que o quadro técnico da SECEX/RN teria know-how suficiente para analisar a questão, de modo que é clarividente que houve cerceamento de defesa por parte da demandada” (TRF5. Apelação nº 0810399-40.2016.4.05.8400. Relator Desembargador Federal Leonardo Carvalho. Julgado em 22/05/2020).
[7] Trata-se do Mandado de Segurança nº 26.358, relatado pelo Ministro Celso de Mello.
[8] Cf.: “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
[9] É o que ocorre, por exemplo, com a prova emprestada, prevista no art. 375, do CPC, e comumente utilizada em processos do TCU.
Artigo publicado no Consultor Jurídico.
por Giamundo Neto Advogados | nov 10, 2023 | Artigo
por Christian Fernandes Rosa
A CCJ do Senado aprovou, em 7 de novembro, o texto base da reforma tributária, um passo significativo para a reestruturação da tributação no Brasil. No entanto, o texto enfrenta críticas, especialmente do setor privado, preocupado com possíveis aumentos na carga tributária. O setor governamental também enfrenta desafios na adaptação a uma nova realidade de gestão coletiva de recursos, afetando Municípios e Estados.
No último dia 7 de novembro, a Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, do Senado aprovou o texto base da proposta de reforma tributária, em um passo significativo para a tão esperada reestruturação do arranjo jurídico da tributação no Brasil.
O texto não ficou livre de críticas de diversos setores. Dentre representantes do setor privado, a preocupação se deu especialmente em razão da possibilidade de incremento da carga tributária para algumas atividades econômicas – isso em um país que é sempre listado como um dos mais destacados quando o assunto é a voracidade arrecadatória.
No setor governamental, está claro que Municípios e Estados ainda vão dispender muitos esforços para se adaptar a toda uma nova realidade em que o pacto federativo passa a se manifestar em um modelo de gestão coletiva desses recursos, tão necessários ao desempenho de funções, políticas e serviços públicos.
Independentemente disso, é notável a evolução que o projeto traz no tema dos impostos sobre o consumo. Conforme bem lembra um estudo publicado pelo IPEA em 2022 sobre os sistemas tributários dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, essa modalidade de tributos é a maior fonte de arrecadação da maioria dos países desenvolvidos e daqueles em desenvolvimento, tais como o Brasil. Nesse mesmo levantamento do IPEA, destacaram-se as recomendações da OCDE sobre a importância da eliminação de múltiplos impostos sobre atividades econômicas associadas ao consumo.
A reunião e simplificação de impostos sobre o consumo, já adotada nos países mais desenvolvidos membros da OCDE, é um dos grandes avanços do projeto aprovado pela Comissão do Senado e está alinhada com um esforço por reduzir a complexidade e burocracia nas operações comerciais. Ao passo que a Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS reunirá impostos federais como o PIS, Cofins e IPI, o novo Imposto Sobre Bens e Serviços – IBS agregará os antigos impostos estaduais e municipais sobre o consumo (ICMS e ISS, respectivamente).
A proposta de reforma tributária está longe de representar um alívio definitivo para a atividade econômica brasileira. Mas, em um país em que o sistema federativo e a complexidade histórica dos regimes tributários sempre foram um óbice considerado intransponível, a racionalização trazida pelo texto aprovado pela CCJ, especialmente na seara dos impostos sobre o consumo, é notícia a ser comemorada.
Dentre outros fatores, a medida, se aprovada, constituirá em um pilar importante de uma plataforma jurídico-institucional necessária para a retomada do desenvolvimento econômico nacional, baseado em investimentos e na dinamicidade do mercado interno.
Artigo originalmente publicado no Portal Migalhas, em 10.11.2023.
por Giamundo Neto Advogados | nov 1, 2023 | Concessões
por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
Concessões problemáticas são verdadeiros gargalos para o poder público. Além de comprometerem a boa execução de serviços públicos e sua fruição pela população, travam investimentos e frustram investidores. Por se tratar de ajustes de longuíssimo prazo, é natural — e mesmo esperado — que eventos supervenientes impactem de modo significativo a equação econômico-financeira desses contratos. E é salutar que as partes contratantes disponham de instrumentos para responder de imediato a essas extraordinárias situações.
Ilustra bem esse cenário a iminente aprovação da reforma tributária. A alteração dos tributos e respectiva carga incidente sobre os projetos concessionados obrigará à revisão dos contratos. E evitar que as necessárias discussões e estudos que envolvem esse processo se prolonguem em demasia, comprometendo a saúde da concessão, deve ser um objetivo dos entes contratantes. Daí a relevância do tema deste artigo: o exemplo do Estado de São Paulo ao regular o reequilíbrio cautelar como mecanismo mitigatório de eventos excepcionais de desequilíbrio.
No primeiro semestre deste ano, a Secretaria de Parcerias em Investimentos do Estado de São Paulo (SPI-SP), também recentemente criada, publicou a Resolução SPI nº 19/2023, que regulamenta as medidas de mitigação dos impactos de desequilíbrios econômico-financeiros nos contratos de delegação de serviços públicos normatizados pelo Decreto nº 67.435/2023.
De positiva novidade, o normativo regulamentou a figura do “reequilíbrio cautelar”, que apesar de classificado, de forma geral, como uma prerrogativa do Poder Concedente, não gerando, assim, direito subjetivo à concessionária — como estabelece o artigo 2º, inciso I da Resolução —, apresenta-se como potencial instrumento de redução dos impactos da negociação prolongada a que muitos pedidos de reequilíbrio acabam se sujeitando.
Veja-se que o normativo e a consequente abertura para a discussão do modelo endereça um problema que apesar de há muito enfrentado pela administração pública certamente exacerbou-se no período pandêmico, em que a falta de uma resposta célere do poder público colocou em risco a continuidade de uma série de contratos, pelo menos no que se refere ao seu ponto de equilíbrio inicial. No caso das concessões, a questão é ainda mais sensível em razão da longevidade desses contratos e dos graves prejuízos da mora em uma resposta quanto ao desequilíbrio, gerando um verdadeiro efeito “bola de neve” a longo prazo.
A ideia por trás da resolução, portanto, é permitir que essa discussão não se prolongue em demasia, em prejuízo dos contratos vigentes e do próprio serviço público prestado, mas sem destoar da natural complexidade das apurações que envolvem um processo de reequilíbrio contratual. A um só tempo, pode-se manter a seriedade do processo avaliatório do reequilíbrio, mas estancando aqueles prejuízos imediatos que, não sanados de pronto, acabam por deteriorar o curso da avença, além de majorar os prejuízos a serem recompostos pelo Poder Concedente.
Trata-se, assim, de relevante desdobramento do princípio geral do dever de mitigar os próprios prejuízos — ou duty to mitigate the loss em jargão comumente empregado pela doutrina — e da própria boa-fé objetiva, que conduz a decisões céleres, eficazes e, porque não, consensuais. Igualmente, a resolução coloca-se em consonância aos comandos mais recentes da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em especial quanto à possibilidade de compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais [1].
Desse modo, em termos práticos, o normativo reconhece que antes mesmo da conclusão definitiva do procedimento de apuração do desequilíbrio, naturalmente delongado em razão de sua complexidade, algumas medidas reparatórias sejam antecipadas para se evitar que eventual prejuízo se agrave pela demora da recomposição, sendo certo que a resolução, embora inicialmente de adoção discricionária, também regulamenta hipóteses de ação vinculada por parte do poder público.
Nesse contexto, autorizam-se, como mecanismos cautelares, a adoção da antecipação, postergação ou cancelamento de investimentos, a inclusão de investimentos adicionais, a suspensão da exigibilidade de pagamentos devidos ao Poder Concedente ou agente fiscalizador, a elevação ou redução desses valores, assim como de tarifas, o pagamento de indenizações, a elevação ou desoneração de encargos e a transferência de custos [2]. Perde-se, no entanto, pela ausência, no normativo, de algum indicativo sobre a possibilidade de que a concessionária opine minimamente sobre as medidas a serem adotadas, nem mesmo sobre a sua efetividade para a recomposição [3].
Quanto à limitação da discricionariedade, acima mencionada, o normativo estabelece as situações em que será obrigatória a avaliação quanto ao cabimento das medidas de mitigação previstas na resolução. São os casos de potencial comprometimento da continuidade da prestação dos serviços ou da solvência da concessionária; em que a proximidade do encerramento da vigência da concessão indique a subsistência de saldo regulatório; e em que o desequilíbrio projetado corresponda a um impacto anual ou consolidado de mais de 5% da arrecadação bruta para eventos de desequilíbrio com efeitos contínuos no tempo ou que não sejam projetados para o futuro, respectivamente [4].
Uma vez identificado o enquadramento da situação e iniciado o procedimento, os órgãos ou autarquias competentes para a regulação ou gestão do contrato deverão apresentar a estimativa preliminar do impacto do evento de desequilíbrio; assim como indicar as medidas cautelares cabíveis, cuja escolha final ficará a cargo da SPI-SP [5].
Mais uma vez, reforça-se que as medidas cautelares de reequilíbrio serão, em regra, discricionárias, salvo nos casos em que a ocorrência do desequilíbrio tenha sido definitivamente reconhecida pelo órgão competente ou possa ser presumida; for possível a adoção de alguma das medidas cautelares; ou não houver comprovada indisponibilidade dos recursos para o cumprimento das obrigações orçamentárias e financeiras do Estado ou para a preservação da autonomia financeira da agência reguladora responsável pela fiscalização da execução do contrato [6].
Justamente em razão da sua cautelaridade, as medidas eventualmente aplicadas não poderão superar o percentual de 80% do impacto econômico-financeiro estimado do evento de desequilíbrio, assim como não poderão importar recebimento de recursos antecipadamente ao efetivo impacto financeiro do evento de desequilíbrio [7]. Com isso, assegura-se que a concessionária não venha a ser indevidamente beneficiada por uma recomposição superior ao que lhe seria definitivamente devido ao final do processo.
Por fim, estabelece-se que nos casos em que deferida a aplicação da medida cautelar os respectivos processos administrativos terão tramitação prioritária, visando à mensuração definitiva do desequilíbrio e ao consequente ajuste das medidas de recomposição; assim como o andamentos dos trabalhos serão avaliados trimestralmente pela SPI-SP, mediante o recebimento, por parte do órgão ou autarquia responsável pela regulação e gestão do contrato, de relatório circunstanciado das atividades realizadas para a mensuração definitiva do desequilíbrio [8].
Assim, ainda que sem resultados mais consolidados para se colocar em prova a efetividade do instituto, não há dúvidas de que o normativo se tornou um importante precedente sobre o tema envolvendo reequilíbrios cautelares, cujo exemplo merece ser irradiado para outros entes e esferas estatais. Trata-se de relevante mecanismo de segurança jurídica e previsibilidade dos negócios de longo prazo estabelecidos com o poder público, atraindo novos investimentos para a infraestrutura. Que haja o espraiamento desse modelo regulatório para o âmbito nacional.
[1] Cf.: “Art. 27. A decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”.
[2] O detalhamento das medidas cautelares está contido no artigo 2º, inciso III, da Resolução.
[3] A concessionária, inclusive, sequer é legitimada para formular o requerimento de instauração desse procedimento, conforme estabelece o artigo 2º, inciso IV, da Resolução.
[4] É o que estabelece o artigo 3º da Resolução.
[5] Cf. artigo 5º, da Resolução, que inclusive impõe o prazo de dez úteis para a adoção dessas providências.
[6] Vide artigo 6º da Resolução.
[7] Cf. artigo 6º, parágrafo único da Resolução.
[8] Cf. artigo 7º da Resolução.
por Giamundo Neto Advogados | out 20, 2023 | Compliance
por Christian Fernandes Rosa e Marília Sodré Siviero
Muito embora tenha sido um marco no combate aos desvios nas relações público-privadas, a Lei Anticorrupção, de 2013, não estabeleceu a obrigatoriedade de implementação de programas de compliance nas empresas. Dispôs apenas que a existência de um Programa de Integridade seria um redutor de sanções, algo valioso caso a organização viesse a praticar atos de suborno ou lesivos à Administração Pública.
Sob o regime da Nova Lei Geral de Licitações, os Programas de Integridade passam a ser praticamente obrigatórios para empresas que queiram licitar e contratar com o Poder Público. Com a promulgação da nova Lei, as empresas que contratarem com a Administração Pública deverão comprovar a implementação de um Programa de Integridade no prazo de até seis meses, contados da assinatura do contrato, sempre que se configurar no caso uma contratação de grande vulto, definida na lei nacional como aquelas de valores superiores a 200 milhões de reais. Mas engana-se quem imagine que ainda assim o escopo da exigência ficará limitado.
Isso porque esse valor pode ser – e é recomendável que seja – revisto por estados e municípios, para fins de adequação às dimensões de suas próprias contratações, qualificando como vultosas contratações a partir de valores inferiores aos da norma nacional.
O Distrito Federal, por exemplo, determinou em 2018 que empresas que venham celebrar contratos com valor igual ou superior a 5 milhões de reais devem ter um Programa de Integridade. Em 2021, o Município de Porto Alegre aprovou lei semelhante.
O momento em que a implementação do programa deve ser comprovada também pode variar a depender da legislação. Enquanto a Nova Lei Geral de Licitações confere até seis meses para adequação, no Distrito Federal a exigência se dá a partir da assinatura do contrato.
Efetivamente, a tendência posta é que contratações públicas com valores minimamente significativos exigirão dos agentes privados interessados um sistema robusto de compliance anticorrupção, capaz de ser aferido por evidências objetivas e verificáveis.
Assim, é algo certo: a partir de dezembro 2023, com a entrada em vigor da Nova Lei de Licitações, as empresas terão que se adequar às novas exigências, sob pena de perderem acesso às demandas contratuais públicas, um mercado estratégico para diversos setores.
Artigo originalmente publicado no site LegisCompliance, em 19.10.2023.
por Giamundo Neto Advogados | out 18, 2023 | Artigo
Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
O debate sobre a privatização de empresas estatais é bastante presente no cotidiano nacional e, de tempos em tempos, ganha algum reforço adicional a depender dos interesses postos. Nos últimos meses, a discussão que toma corpo é sobre a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), mas outras grandes estatais já estiveram em meio a esse mesmo debate, a exemplo dos recentes movimentos com a Eletrobras, a TAG e a Companhia Docas do Espírito Santo.
Embora relevante o debate sobre os efeitos gerais do fenômeno da privatização no Brasil, este artigo centra-se em uma questão de cunho mais prático: uma vez formalizada a privatização de uma estatal o que acontece com os contratos vigentes? Isto é, os contratos celebrados sob o influxo de normas de Direito Público podem ser mantidos ou devem rescindidos [1].
A contribuição com a resposta desses questionamentos perpassa por algumas questões preliminares. A primeira delas é definir a que nos referimos ao empregarmos o vocábulo “privatização”. Num segundo momento, é importante discutir a regência dos contratos discutidos — se submetidos à Lei Federal nº 8.666/1993 ou à Lei Federal nº 13.303/2016. Por fim, necessário avaliar a posição da estatal no contrato analisado, ou seja, se figura como contratante ou contratada.
Sobre o primeiro ponto, emprega-se a proposta classificatória de Mância e Menegat, que adotam o termo “despublicização” para os casos “em que há repasse da titularidade de bens e/ou atividades do Estado à iniciativa privada, com a redefinição dos limites de atuação do setor público e o setor privado” [2]. Dentre as diferentes técnicas de despublicização, trata-se, aqui, da alienação de participação societária, em que o Estado aliena as cotas/ações detidas à inciativa privada, tornando a estatal [3] uma pessoa jurídica integralmente regida pelas regras de Direito Privado.
Com relação ao regime contratual, apesar de a edição da Lei das Estatais ter ocorrido há mais de seis anos, as regras de transição de regime, o prazo de duração de contratos (principalmente aqueles firmados por escopo) e o tempo de adaptação necessário fazem com que muitas estatais ainda detenham contratos regidos pela Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Nesse sentido, é comum que algumas estatais, ainda hoje, possuam em vigência tanto contratos regidos pela Lei nº 13.303/2016 como pela Lei nº 8.666/1993.
No âmbito da Lei nº 8.666/1993 não há uma grande diferença de regime dos contratos firmados pelas estatais prestadoras de serviços públicos daquele aplicável a qualquer outro órgão ou entidade da administração pública direta. Os contratos dessas estatais eram submetidos aos influxos do Direito Público, com a flexibilização admitida apenas para as estatais voltadas à exploração de atividade econômica. Nesse sentido, pelo menos no caso das estatais prestadoras de serviços públicos, pode-se dizer que a figura que regia as relações com terceiros, como regra, era a de um contrato administrativo propriamente dito [4].
Com a publicação da Lei nº 13.303/2016 almejou-se um regime mais flexível, em que os contratos celebrados pelas estatais, de modo geral, fossem contratos de Direito Privado, sem a presença de cláusulas exorbitantes [5]. Com efeito, a norma não estabelece, propriamente, cláusula exorbitantes a favor das estatais, embora ainda existam alguns poucos condicionamentos de regime especial, motivando a criação de uma categoria específica de “contratos típicos das empresas estatais” [6].
Por fim, a posição da estatal no contrato também pode ter reflexos na análise realizada, seja porque eventuais cláusulas exorbitantes apenas estarão presentes quando a estatal ocupe a posição ativa de contratante no ajuste, seja porque existem figuras que admitem a contratação direta apenas em razão da qualidade dessas empresas enquanto entidades pertencentes à administração pública [7].
Postas essas diversas questões, a interconexão dos temas ajuda a traçar alguns diferentes panoramas e conclusões, a depender do polo contratual em que se encontra a estatal e respectiva lei regente.
Nos contratos firmados sob a égide da Lei nº 13.303/2016, em que já há um natural afastamento da tipificação de contrato administrativo — devendo ser celebrado instrumento contratual regido pelo Direito Privado —, a privatização da estatal não deverá ter, como regra, grandes impactos ao ajuste, em razão de sua submissão ao regime privatista.
De outro lado, nos contratos firmados sob a égide da Lei nº 8.666/1993, em que a estatal figure na posição de contratada, a manutenção do contrato com a estatal privatizada é possível. Para tanto, devem ser mantidas as condições gerais da sua contratação, podendo, inclusive, ser realizada a prorrogação desse ajuste, desde que tal possibilidade esteja prevista no instrumento convocatório e demonstrados o interesse público e a vantajosidade da medida, conforme decidido pelo Tribunal de Contas da União, na resposta à consulta objeto do Acórdão nº 2.930/2019-Plenário.
Por fim, nos contratos submetidos à Lei nº 8.666/1993, em que a estatal atue na posição de contratante, a privatização tem impacto direto e imediato para as contratações vigentes, cuja manutenção fica condicionada a uma ampla revisão de cláusulas exorbitantes, desde que haja interesse das partes em manter o vínculo contratual. Afinal, todos os pressupostos autorizadores da presença da exorbitância desaparecem em razão da mudança de regime jurídico, não mais se justificando a posição de privilégio. Além disso, essa mudança de regime e a maior configuração da autonomia privada autorizam tanto que as partes renegociem as bases do contrato, como optem por rescindi-lo, nesse último caso sem a penalização que seria inerente ao regime sancionatório dos contratos administrativos.
[1] A discussão se alinha e complementa as relevantes linhas iniciais traçadas por Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza e Pedro Henrique Braz de Vita em artigo de opinião publicado neste mesmo portal sobre os efeitos da privatização de empresas estatais sobre vínculos contratuais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-05/opiniao-privatizacao-estatais-vinculos-preexistentes. Acesso em 12/10/2023.
[2] MÂNCIA, Fernando Borges; MENEGAT, Fernando. Teoria jurídica da privatização: fundamentos, limites e técnicas de interação público-privada no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 106.
[3] Ainda na lição de Mância e Menegat, a constituição de uma estatal, por si só, já configura espécie de privatização, na modalidade da “descentralização”, caracterizando espécie de “fuga para o Direito Privado”, na relevante conceituação de Maria João Estorninho (MÂNCIA, Fernando Borges; MENEGAT, Fernando. Teoria jurídica da privatização: fundamentos, limites e técnicas de interação público-privada no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 106).
[4] Cf.: “Os contratos que tais empresas firmem para atendimento das finalidades a que estão legalmente prepostas — e assim também os efetuados pelas empresas estatais encarregadas da promoção de obras públicas — são contratos administrativos, nos mesmos termos e condições em que o seriam os travados pela Administração direta” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 215).
[5] Cf.: “As empresas estatais, como pessoas jurídicas de direito privado, em princípio celebram apenas contratos de Direito Privado, desprovidos de cláusulas exorbitantes, salvo no que essas consubstanciarem poderes contratuais unilaterais constantes dos próprios contratos de direito privado (ex.: o poder de denúncia vazia – rescisão unilateral – nos contratos de locação)” (ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 185).
[6] Esse é o tratamento dado por STROPPA, Christianne de Carvalho. O regime jurídico dos contratos das empresas estatais prestadoras de serviços públicos na Lei de Responsabilidade das Estatais – Lei nº 13.303/2016. 2019. 213f. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.
[7] É o caso das dispensas contidas no artigo 24, incisos VIII e XVI, da Lei nº 8.666/1993.