por Giamundo Neto Advogados | out 16, 2024 | Artigo
Camillo Giamundo
A lei 14.230/21 exige comprovação de prejuízo efetivo em casos de improbidade administrativa, fortalecendo a justiça e a defesa de direitos.
A alteração promovida pela lei 14.230/21 trouxe significativas inovações ao regime jurídico da improbidade administrativa no Brasil, modificando diversos aspectos da lei 8.429/92, conhecida como LIA – Lei de Improbidade Administrativa.
Um dos pontos centrais dessa reforma foi a introdução da exigência da comprovação de prejuízo efetivo ao erário para a caracterização de atos de improbidade previstos no art. 10 da LIA. Essa mudança contrasta com a redação anterior da lei, que, embora não previsse expressamente a necessidade de comprovação do dano, permitia a condenação com base no chamado “dano presumido”. Essa presunção permitia, em determinados casos, a aplicação de sanções mesmo sem a demonstração concreta de que os cofres públicos haviam sido efetivamente lesados.
Antes da reforma legislativa, o STJ adotava um entendimento consolidado de que o prejuízo ao erário poderia ser presumido, permitindo a condenação de agentes públicos e privados sem a necessidade de uma prova direta de dano. Esse entendimento era bastante comum em casos de licitações, contratos administrativos e, principalmente, nas ações fundadas no art. 10 da lei de improbidade administrativa, que trata de atos que causam lesão ao erário. Assim, mesmo que o serviço ou bem contratado tivesse sido devidamente entregue ou executado, o simples fato de o processo de contratação ter violado os ditames legais já poderia configurar a prática de ato de improbidade, levando à condenação dos responsáveis.
No entanto, com a edição da lei 14.230/21, adotou-se nova interpretação dessa hipótese. A nova redação do art. 10 da LIA passou a exigir expressamente que a lesão ao erário seja efetiva e comprovada, isto é, a mera violação formal da legalidade sem a demonstração concreta de que houve prejuízo aos cofres públicos não é mais suficiente para caracterizar o ato de improbidade administrativa. Esse novo requisito, introduzido pela reforma, trouxe uma abordagem importante e mais rigorosa em relação à necessidade de prova do dano, elevando o padrão probatório para condenações nesse tipo de ação.
Essa mudança foi recentemente consolidada pela 1ª turma do STJ no julgamento do RE 1.929.685 – TO. Nesse julgamento, o STJ reforçou que, mesmo em processos que tratem de fatos ocorridos antes da vigência da lei 14.230/21, mas que ainda estejam em trâmite, a exigência de comprovação do prejuízo efetivo deve ser observada. O ministro Gurgel de Faria, relator do caso, destacou que, com a nova redação do artigo 10, o legislador expressamente afastou a possibilidade de condenações baseadas na presunção de dano, exigindo a prova cabal da lesão ao erário para a caracterização do ato ímprobo.
No caso específico julgado pelo STJ, o ministério Público do Tocantins havia ajuizado uma ação de improbidade administrativa contra dois agentes públicos e uma empresa, em razão de contratações diretas sem licitação para o projeto “Agenda Tocantins”, no valor de R$ 2,2 milhões. Em primeira instância, os acusados foram condenados com base no entendimento anterior de que o dano ao erário era presumido em casos de contratações irregulares. Contudo, o Tribunal de Justiça do Tocantins reformou a decisão, afastando a condenação por falta de prova de prejuízo efetivo. O STJ, ao analisar o recurso, manteve a decisão do TJTO, afirmando que, com a nova redação da LIA, não é mais possível condenar por improbidade sem a demonstração concreta do dano.
Essa nova interpretação do STJ está em perfeita consonância com o espírito da lei 14.230/21, que busca aprimorar a segurança jurídica nas ações de improbidade administrativa, evitando condenações baseadas em presunções e garantindo que as sanções sejam aplicadas apenas em situações em que o dano ao erário seja comprovado.
Tal mudança representa um avanço no tratamento das ações de improbidade, uma vez que afasta a possibilidade de decisões baseadas em conjecturas ou em interpretações amplas e genéricas da lei, exigindo uma análise mais aprofundada dos fatos e provas.
A exigência de prova do prejuízo efetivo não apenas reforça a necessidade de uma atuação mais cautelosa por parte dos órgãos acusadores, mas também protege os agentes públicos e privados de condenações injustas, baseadas em presunções que nem sempre refletem a realidade dos fatos. A mudança legislativa e a adequação da jurisprudência do STJ impõem aos operadores do Direito a obrigação de atuar com ainda mais rigor na investigação, coleta de provas e na análise dos casos, buscando a verdade real.
A nova orientação legislativa, fortalecida pelo posicionamento do STJ, é digna de elogios, visto que a ação de improbidade administrativa é um instrumento de grande importância para a proteção do patrimônio público e para a moralidade administrativa e, devido à sua gravidade e às severas sanções que podem ser impostas, é fundamental que seu uso seja pautado pela responsabilidade e pelo compromisso com a justiça.
A exigência de comprovação do dano efetivo evita que agentes públicos ou privados sejam injustamente penalizados em razão de meras presunções, protegendo sua honra, imagem e direitos fundamentais.
Além disso, ao estabelecer um critério mais rigoroso para a condenação por improbidade, a lei 14.230/21 contribui para o fortalecimento do devido processo legal e da ampla defesa, princípios essenciais em qualquer Estado Democrático de Direito. A justiça não pode se basear em conjecturas, mas sim em provas concretas e robustas. A reforma legislativa, ao exigir a demonstração de prejuízo efetivo, coloca as ações de improbidade em um patamar de maior seriedade e responsabilidade, assegurando que as condenações sejam justas e proporcionais aos danos efetivamente causados ao erário.
É certo, portanto, que a mudança legislativa trazida pela lei 14.230/21 e a recente adequação do entendimento do STJ são passos importantes no aprimoramento do sistema jurídico brasileiro. A improbidade administrativa é um tema que afeta diretamente a confiança da sociedade nas instituições públicas e no combate à corrupção e má utilização do patrimônio público, e, por isso, é essencial que as ações que tratam do tema sejam conduzidas de forma séria e responsável.
Publicado originalmente no Migalhas.
por Giamundo Neto Advogados | out 9, 2024 | Artigo
Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
Nos últimos anos, o Estado brasileiro tem indicado a busca por maior eficiência na gestão pública por meio da cooperação com a iniciativa privada. Modelos como concessões, permissões, parcerias público-privadas (PPPs) e outras formas de ajuste têm sido amplamente adotados para delegar a execução de serviços e obras públicas a particulares, geralmente em um contexto intencional de modernização e redução de custos, nem sempre alcançado. Entidades sem fins lucrativos, como organizações do terceiro setor, também são, em alguma medida, recorrentes “parceiras” do Estado, a partir do desenvolvimento de projetos sociais diversos.
Contudo, a ausência de um regime legal dedicado e sistematizado para as parcerias lato sensu levanta questionamentos sobre a segurança jurídica, a transparência e a efetividade dessas relações. É o caso, por exemplo, dos acordos de cooperação técnica e dos convênios, o primeiro não regulado — senão pelas disposições gerais da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos [1] —, e o segundo compreendido por normas genéricas de controle e repasse de recursos, sem uma disciplina mais geral em termos de obrigações e contrapartidas [2].
A colaboração entre o setor público e o privado não é novidade. Desde a criação das primeiras autarquias e concessões na década de 1930, o Brasil sinalizava a necessidade de delegar determinadas atividades aos particulares, especialmente aquelas de caráter industrial e comercial. O movimento de descentralização administrativa e a expansão das autarquias foi reforçado pela reforma administrativa de 1967, consolidando a distinção entre administração direta e indireta e criando um ambiente propício para a celebração de contratos com particulares [3].
Entretanto, foi na década de 1990, com o processo de privatizações e a criação de novos instrumentos de parceria, que se visualiza um maior impulso para o desenvolvimento de um modelo gerencial de administração pública, orientado pela busca da eficiência e inspirado em princípios como a subsidiariedade, no que o papel da iniciativa privada passa a ser visto como essencial [4]. A partir desse momento, o Estado brasileiro faz um movimento de se concentrar em atividades estabelecidas como “essenciais”, delegando à iniciativa privada a execução de outras funções, como a prestação de serviços públicos, a gestão de bens públicos e o fomento à iniciativa privada de interesse público.
Mosaico de leis e os pilares de uma sistematização
Embora o Brasil tenha experimentado uma crescente institucionalização das parcerias, é notória a ausência de um regime jurídico que sistematize as diferentes formas de ajustes realizados entre o Estado e os particulares em suas muitas discrepâncias. Hoje, as parcerias são regidas por um mosaico de leis específicas, como a Lei das Concessões (Lei Federal nº 8.987/1995), a Lei das PPPs (Lei Federal nº 11.079/2004), a Lei das Organizações Sociais (Lei Federal nº 9.637/1998), o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei Federal nº 13.019/2014), entre outras. Apesar de importantes, esses diplomas legais não contemplam de maneira abrangente a complexidade e a variedade das relações entre o setor público e o privado — o que é uma constante no Direito.
Sem nenhuma pretensão de esgotamento do tema, mas, pelo contrário, com a ideia de lançar algumas considerações gerais sobre a temática, três pilares nos parecem relevantes para se pensar em um início de sistematização: (1) uma classificação geral sobre os diversos conceitos que podem ser inseridos na definição de “parceria”; (2) o delineamento de princípios aplicáveis; e, (3) a criação de obrigações e contrapartidas pensadas para cada um dos diferentes modelos de parceria.
Um microssistema sustentado em categorias previamente estabelecidas pela doutrina [5], mas com uma abordagem mais abrangente e detalhada, poderia facilitar não somente a compreensão dos institutos, mas trazer respostas personalizadas. As parcerias de delegação de serviços públicos, por exemplo, poderiam ser subdivididas de acordo com a natureza do serviço prestado e a forma de remuneração do parceiro privado. Já as parcerias de fomento à iniciativa privada poderiam seguir critérios mais rígidos para a concessão de benefícios fiscais e repasses de recursos, de modo a evitar abusos e fraudes.
Outro aspecto de relevo se direciona ao mapeamento de princípios fundamentais aplicáveis ao sistema. O princípio da subsidiariedade, por exemplo, que orienta a atuação estatal apenas em atividades nas quais a iniciativa privada não tenha condições de atuar com eficiência, é um pilar relevante. Também a eficiência, incorporado à Constituição de 1988 pela Emenda Constitucional nº 19/1998, é importante guia à gestão pública. Ainda, o princípio da transparência se revela indispensável para a condução dessas parcerias, notadamente quanto à clareza nos critérios de seleção dos parceiros privados e nas regras de execução e fiscalização dos contratos.
Mais um pilar de destaque reside na elaboração de cláusulas e condições regulando obrigações e contrapartidas de parte a parte. Se por um lado, as normas sobre PPPs e concessões trazem regras mais estruturadas sobre esses modelos de parceria, inclusive sendo responsáveis pela modernização de condições contratuais, com institutos novos como a matriz de riscos e responsabilidades; as parcerias firmadas com entidades do terceiro setor ainda sofrem de uma má compreensão sintomática das visões igualmente errôneas sobre organizações não governamentais.
Diante da pluralidade de modalidades de parceria entre o Estado e os particulares e da falta de uma legislação unificada, o país se beneficiaria imensamente de um microssistema jurídico específico para regular essas relações, o que apesar de, em grande parte, depender do Legislativo, pode se valer de uma leitura sistemática por parte dos operadores do Direito — obviamente nos limites admitidos pela legalidade. Se um sistema legalmente consolidado poderia eliminar sobreposições e incoerências entre os diferentes diplomas legais, além de estabelecer diretrizes claras para a celebração, execução e extinção de todas as modalidades de parcerias; a interpretação cotidiana das normas de forma realística e contextualizada é poderoso instrumento de adaptação do sistema às novas dinâmicas nele imbricadas.
Nesse contexto, também os mecanismos de controle e fiscalização têm o seu destaque, com a participação ativa dos Tribunais de Contas e do Ministério Público como agentes de direcionamento e não de repressão ou desestímulo. A prestação de contas e a avaliação dos resultados dessas parcerias, certamente de natureza obrigatória, além de garantir que os recursos públicos sejam utilizados de maneira eficiente e que os serviços prestados atendam às necessidades da população, devem servir de instrumento educativo e de aprimoramento da gestão.
Portanto, a experiência brasileira com parcerias entre o Estado e os particulares demonstra que, embora essas relações sejam emblemáticas para a modernização da administração pública e a melhoria da prestação de serviços à população, elas ainda carecem de um regime jurídico claro e consolidado. A criação de um microssistema jurídico específico para regular essas parcerias é necessária e bem-vinda, diante dos desafios impostos pela crescente complexidade das relações entre o setor público e o privado e a insuficiência das normas gerais de contratações para dar conta dessas complexidades.
[1] Cf. artigo 184 da Lei Federal nº 14.133/2021: “Art. 184. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber e na ausência de norma específica, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração Pública, na forma estabelecida em regulamento do Poder Executivo federal”.
[2] Apesar do inegável avanço na redação do Decreto Federal nº 11.531/2023, que revoga o Decreto nº 6.170/2007, trata-se de norma ainda bastante recente, cujo balanço de sua aplicação deve ser mais bem analisado nos próximos anos.
[3] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. Revista Interesse Público. Belo Horizonte, nº 42, ano 9. Mar-Abr. 2007.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[5] Um primeiro passo no sentido da sistematização se dá em termos de classificação. Dinorá Adelaide Musetti Grotti, em sua análise sobre as parcerias da Administração Pública, sugere uma taxonomia que pode servir como base. Ela divide as parcerias em quatro grandes grupos: (i) parcerias como forma de delegação de serviços públicos; (ii) parcerias como mecanismo de fomento à iniciativa privada de interesse público; (iii) parcerias como instrumento de desburocratização da administração pública; e (iv) terceirização (GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Parcerias na administração pública. Revista Brasileira de Direito Administrativo e Regulatório. Nº 05. São Paulo: MP Editora. 2012).
Publicado originalmente no ConJur.
por Giamundo Neto Advogados | out 3, 2024 | Artigo
Salvador Beliz Abra Oliveira e Caio Fugiwara Garcia
Diariamente, pessoas físicas e jurídicas celebram contratos privados com o objetivo de estabelecer as condições para a prestação de serviços ou o fornecimento de bens, bem como o preço a ser pago pelo beneficiário. O inadimplemento da obrigação, na forma pactuada, constitui o devedor em mora, de pleno direito, desde que a prestação seja líquida e tenha data certa de vencimento. Alternativamente, a mora poderá ser constituída mediante interpelação extrajudicial ou judicial do devedor [1].
Com a constituição da mora, o credor adquire o direito de exigir do devedor não apenas o cumprimento da obrigação principal, mas também o pagamento de encargos, como a atualização monetária e os juros moratórios, independentemente de prova de prejuízo [2].
A atualização monetária tem como objetivo preservar o valor real da prestação, frente aos efeitos negativos da inflação durante o período de inadimplemento. Os juros moratórios, por sua vez, buscam penalizar o devedor pelo atraso no cumprimento da obrigação.
Embora a legislação preveja as consequências do inadimplemento, é comum que contratos privados não estabeleçam claramente os critérios para aplicação dos encargos moratórios, como os índices da correção monetária e as taxas de juros moratórios aplicáveis sobre o débito principal.
Na ausência de parâmetros convencionados, ensejando omissão contratual, o credor pode recorrer ao Poder Judiciário para a recuperação do crédito. Contudo, nessa hipótese, a condenação observará os critérios legais previstos para os consectários moratórios aplicáveis às dívidas civis.
Antes da promulgação da Lei Federal nº 14.905/2024, nos casos em que não havia previsão contratual do índice de correção monetária, os tribunais comumente aplicavam o INPC/IBGE (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), baseando-se em aplicação, por analogia, do disposto no artigo 2º da Lei Federal nº 6.899/1981 e no Decreto Federal nº 86.649/1981, considerando o INPC como sucessor dos extintos índices ORTN e IPC [3].
Quanto aos juros moratórios, a antiga redação do artigo 406 do Código Civil, que dispunha sobre a taxa de juros legal, foi alvo de intensa divergência jurisprudencial e doutrinária, com duas posições principais:
- (a) os juros legais corresponderiam à taxa Selic;
- (b) os juros legais seriam de 1% ao mês, conforme previsto no artigo 161, § 1º, do Código Tributário Nacional (CTN) [4].
Taxa Selic seria usada no entendimento do STJ
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, prevalecia o entendimento de que os juros legais corresponderiam à taxa Selic, inclusive em regime de recursos repetitivos, resultando nos enunciados dos Temas nº 99 [5] e 112 [6]. No entanto, a controvérsia sobre a taxa de juros legais aplicáveis às dívidas civis persistiu nos anos subsequentes, sendo objeto de novo julgamento sob o rito dos recursos repetitivos (REsp nº 1.795.982).
Diante da insegurança jurídica provocada pela omissão legislativa sobre os critérios aplicáveis e pela divergência jurisprudencial, o Poder Executivo tomou a iniciativa de propor o PL nº 6.233/2023, destinado a alterar o Código Civil para preencher a lacuna normativa. Em 28 de julho de 2024, o texto foi sancionado pela Presidência da República, resultando na Lei Federal nº 14.905/2024, inaugurando novo panorama legal.
A exposição de motivos do referido PL esclarece que os principais fatores que motivaram a reforma foram a intensa divergência jurisprudencial e a inadequação da taxa Selic, que “não remunera o credor adequadamente pelos riscos a que está exposto”, assim como os juros simples de 1% ao mês, que “não responde às condições de mercado, podendo ser relativamente alta ou baixa a depender de aspectos conjunturais” [7].
Com a promulgação da lei, a controvérsia sobre os critérios legais que serão fixados para as condenações envolvendo as dívidas civis foi solucionada, visto que:
- (a) a atual redação do parágrafo único do artigo 389 do Código Civil expressamente estabelece que, na hipótese de não ser convencionada correção monetária, o índice aplicável será o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE); e que
- (b) a atual redação do artigo 406 do Código Civil expressamente estabelece que a taxa legal de juros moratórios, isto é, quando não forem convencionados, corresponderá à taxa Selic, deduzindo-se a atualização monetária que trata o dispositivo citado no item anterior.
Por outro lado, no julgamento mais recente sob o rito dos recursos repetitivos (REsp nº 1.795.982) [8], o STJ ratificou que os juros moratórios legais incidentes para as dívidas civis anteriores à vigência da Lei Federal nº 14.905/2024 será a Selic.
Novas regras para atualização monetária
Os novos critérios legais para a atualização monetária e juros moratórios das dívidas civis passaram a vigorar a partir de 31 de agosto de 2024, nos termos do artigo 5º da nova lei. Até essa data, as dívidas civis continuariam a ser corrigidas pelo INPC e pela taxa Selic, conforme entendimento expressado no julgamento do REsp nº 1.795.982.
Embora não conste expressamente no texto legal, oportuno ressalvar que os novos critérios estabelecidos pela Lei nº 14.905/2024 não poderão retroagir para alterar títulos executivos judiciais, provenientes de condenações transitadas em julgado, em respeito à intangibilidade da coisa julgada, ou do mandamento mais amplo que lhe dá origem, que consiste na segurança jurídica, conforme o artigo 6º da Lindb e o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição [10].
Para aqueles que não tenham interesse em aplicar os critérios legais, obviamente se mantém a liberdade contratual de estipular condições específicas para melhor resguardar os seus interesses. Entretanto, a alteração legislativa impactará os limites que os particulares devem observar no exercício de sua autonomia de vontade, principalmente ao convencionar as taxas de juros moratórios.
Isso porque o artigo 5º do Decreto Federal nº 22.626/1993 (Lei de Usura) veda a estipulação de juros moratórios em taxas superiores a 1% ao mês (12% ao ano) e o artigo 1º do referido decreto veda e pune contratações que estipulem taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal.
Contudo, o artigo 3º da Lei Federal nº 14.905/2024 excluiu determinadas situações da limitação trazida pelo Decreto Federal nº 22.626/1993, autorizando a pactuação de juros superiores ao teto legal quando:
- (a)contratadas entre pessoas jurídicas;
- (b) representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários;
- (c) contraídas perante: i) instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil; ii) fundos ou clubes de investimento; iii) sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; e iv) organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou
- (d) realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.
A ausência de um teto legal, contudo, não retira o controle sobre condições manifestamente abusivas, considerando que o direito contratual contemporâneo continua orientado pelos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento ilícito.
Além disso, também será necessário aguardar regulamentações e decisões judiciais para verificar a aplicabilidade dessa dinâmica entre pessoas jurídicas e pessoas naturais, oriundas de casos de desconsideração da personalidade jurídica e de responsabilidade solidária e/ou subsidiária da pessoa física.
Regulamentação dos juros moratórios
As alterações legislativas trazidas pela Lei nº 14.905/2024 introduzem importantes mudanças na regulamentação dos juros moratórios convencionais, principalmente ao flexibilizar os limites impostos pela Lei de Usura em determinadas relações jurídicas. Enquanto as obrigações pactuadas entre pessoas jurídicas passam a gozar de maior grau de liberdade para estipulação de taxas de juros, as negociações entre pessoas físicas continuam sujeitas às restrições tradicionais, embora com desafios interpretativos a serem resolvidos pelo Poder Judiciário.
A cautela na elaboração dos contratos e a utilização de cláusulas penais compensatórias poderão ser estratégias eficazes para minimizar riscos e incertezas, garantindo maior segurança jurídica nas relações comerciais.
Ademais, o artigo 406, § 2º, do Código Civil, com a redação dada pela nova lei, atribui ao Conselho Monetário Nacional a incumbência de estabelecer “a metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação”. Diante disso, o Banco Central publicou, em 29 de agosto de 2024, a Resolução CMN nº 5.171, que dispõe sobre a forma de cômputo da “taxa legal” e apresenta a fórmula a ser adotada para a operacionalização dos cálculos.
De acordo com a norma, a fórmula considera os fatores mensais da Selic e do IPCA-15 referentes ao mês anterior ao de referência para o cálculo dos juros, que serão capitalizados na forma simples. Conforme dispõe o artigo 8º do ato normativo, as variáveis da fórmula serão divulgadas pelo Bacen ao primeiro dia útil de cada mês [11].
Paralelamente à divulgação dos primeiros referenciais da Selic e do IPCA, o Bacen já disponibilizou ferramenta que permite a simulação de cálculos de correção de valores por meio da taxa legal, o que pode ser feito pela “calculadora do cidadão” mediante especificação do valor a ser corrigido e dos termos inicial e final [12].
Resta aguardar o posicionamento dos tribunais e eventuais regulamentações adicionais que possam esclarecer a aplicação dessas novas regras, permitindo uma melhor compreensão do alcance e das implicações dessas novas disposições no ordenamento jurídico brasileiro.
[1] Cf. o art. 397 do Código Civil “O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor”, sendo que o parágrafo único complementa afirmando que “não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.”
[2] Cf. o art. 394 do Código Civil “considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.” Em seguida, o art. 395 do Código Civil complementa prescrevendo que “responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários e honorários de advogado”. O art. 407 do Código Civil finaliza dispondo que “Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes”.
[3] AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DÉBITOS JUDICIAIS. CORREÇÃO MONETÁRIA. ÍNDICE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. O entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que, na correção monetária dos débitos judiciais, a utilização do índice INPC é o mais adequado à espécie. Precedentes. 3. Agravo interno não provido. (STJ. AgInt no AREsp nº 1.687.207/RJ. 2020/0078733-6. Terceira Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de julgamento: 08/08/2022. Data de publicação: 15/08/2022)
[4] Nesse sentido, o Enunciado 20 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe que “a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês.” Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/666
[5] Tese firmada no Tema 99 do C. STJ: Relativamente aos juros moratórios a que está sujeita a CEF – por não ter efetuado, no devido tempo e pelo índice correto, os créditos de correção monetária das contas vinculadas do FGTS -, seu cálculo deve observar, à falta de norma específica, a taxa legal, antes prevista no art. 1062 do Código Civil de 1916 e agora no art. 406 do Código Civil de 2002. (…) “atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC”, que “não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=99&cod_tema_final=99
[6] Tese firmada no Tema 112 do C. STJ: A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 do CC/2002 é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=112&cod_tema_final=112
[7] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.233/2023. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para dispor sobre atualização monetária e juros. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2416729
[8] O julgamento se encerrou em 21/08/2024, tendo sido designado o Ministro Raul Araújo para a lavratura do acórdão.
[9] Cf. o art. 6º da LINDB: “a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Acrescenta o §3º que “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.
[10] Cf. o art. 5º, XXXVI, da CF: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
[11] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=5171
[12] Disponível em: https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=exibirFormCorrecaoValores&aba=6
Publicado originalmente no ConJur.
por Giamundo Neto Advogados | out 2, 2024 | Artigo
Giuseppe Giamundo e Fernanda Leoni
O Tribunal de Contas da União (TCU) inaugurou uma nova metodologia de apuração e aplicação de débito em suas fiscalizações. Trata-se do uso da equidade, especialmente em casos de grande vulto, como parâmetro para definição dos montantes a serem indenizados por cada um dos responsáveis em uma determinada condenação.
No caso avaliado (objeto do Acórdão nº 1.835/2024), a condenação solidária envolvia as pessoas jurídicas que atuaram na execução do contrato e pessoas físicas para as quais foram atribuídos diferentes níveis de participação nos fatos apurados, além de ex-gestores de uma determinada empresa pública. Cuida-se de um cenário bastante comum nos polos passivos de fiscalizações realizadas pelo TCU, envolvendo responsáveis pessoas físicas e jurídicas com diferentes participações e capacidade financeira — ambos aspectos centrais desse precedente.
A discussão do caso se baseou numa primeira análise havida em março de 2023, quando o processo foi pautado pela primeira vez, em que se debateu a possibilidade de aplicação, aos casos apreciados pelo TCU, da disposição contida no parágrafo único do artigo 944, do Código Civil, segundo a qual “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”. Naquela oportunidade, entendeu-se pertinente a constituição de um grupo de trabalho que avaliasse a possibilidade de aplicação dessa regra às pessoas físicas, na medida em que teriam capacidade de pagamento reduzida frente às pessoas jurídicas, merecendo tratamento diverso em determinadas situações.
Proporcionalidade da condenação
Os resultados desse grupo de trabalho foram expostos no Acórdão nº 1.370/2023, tendo como uma de suas conclusões a possibilidade de redução equitativa do débito, com foco específico ao nível de gravidade ou culpabilidade da conduta, mas sem um aprofundamento dedicado à desproporcionalidade dessa culpa frente ao dano, como alude o dispositivo do diploma civilista.
Revisitando essa discussão, o ministro Benjamin Zymler, relator de ambos os processos — o precedente do grupo de trabalho e o caso objeto do Acórdão nº 1.835/2024 —, entendeu pertinente trazer ao debate esse viés da proporcionalidade, especialmente para os casos em que a condenação em débito é milionária, quando não bilionária, dado o sentimento de injustiça ocasionado pelas condenações dessa monta àqueles de menor capacidade ou mesmo participação nas condutas apuradas.
Uma premissa bastante interessante do raciocínio do relator diz respeito ao fato de que a aplicação dessa nova metodologia não promoveria a redução do débito, que permaneceria passível de apuração e cobrança integral, inclusive recebendo o influxo das regras civilistas da solidariedade. A ideia, em verdade, seria que a cobrança se dirigisse, proporcionalmente, a quem detivesse maior capacidade de quitação do débito, evitando a natural desproporção de valores relativamente a pessoas físicas e jurídicas, o que, inclusive, coaduna-se ao dever consequencialista proposto pela atual redação da Lindb.
Argumentou ainda o relator que a aplicação equitativa do débito não compromete a noção geral de solidariedade, considerando que a Lei Orgânica do TCU confere ao tribunal a prerrogativa de fixar a solidariedade entre os responsáveis em caso de condenação em débito, o que inclui a possibilidade de estabelecê-la em adequação às peculiaridades do caso concreto.
Estabeleceu-se, além disso, que a proporcionalidade se relacionaria apenas ao ressarcimento do débito. Para as sanções de natureza pecuniária, permanece a regra da aferição de culpabilidade, embora, na prática, a maioria dos acórdãos do TCU não tenha um critério muito claro para a imputação da multa prevista no artigo 57 de sua Lei Orgânica.
Métodos de análise
Especificamente quanto à fixação da metodologia para a busca da equidade na proporção entre a gravidade da culpa e o dano causado, tal como menciona o artigo 944, parágrafo único, CC, algumas técnicas foram avaliadas e, a despeito de ter sido eleita uma forma de cálculo para o caso analisado, situações diversas podem demandar novos métodos de análise, na medida em que o precedente trata, sobretudo, da possibilidade de abertura do julgamento por equidade, que, por sua vez, se atrela à justiça do caso concreto. Logo, em nossa visão, o precedente inaugura algumas premissas gerais, mas não as esgota.
A primeira dessas técnicas seria a de considerar dados macros a respeito da capacidade financeira das empresas em comparação com as pessoas naturais, estimando-se o faturamento médio das empresas do setor e a renda per capita mensal do 1% mais rico da população brasileira, a fim de avaliar, em quantidade de vezes, quão maior seria a capacidade financeira das pessoas jurídicas frente a capacidade das pessoas físicas e, a partir daí, se extrair um número proporcional à condenação [1]. Outra forma possível seria considerar o benefício indevido obtido pela pessoa jurídica, ao invés de seu faturamento, fazendo-se a mesma comparação com a renda das pessoas físicas [2].
Com relação aos responsáveis que detivessem algum tipo de colaboração ou leniência, para os quais o TCU comumente confere um tratamento processual diferenciado, entendeu-se pertinente fixar que a sua solidariedade se limitaria pelo seu quinhão no débito, sempre considerando que esse valor seja superior ao auferido com o ilícito. Portanto, o quinhão de cada responsável colaborador seria calculado a partir do número de responsáveis solidários, desde que se mantivesse em valores razoáveis ao que a ele se atribuiu como benefício indevido auferido.
Assim, de modo geral, pode-se afirmar que a metodologia de imposição equitativa do débito sugerida pelo TCU, independentemente da técnica adotada em cada caso, será baseada na identificação da proporcionalidade do débito, avaliando-se a proporção entre culpa e dano; na aferição da capacidade de pagamento do responsável, considerando a premissa de que a recuperação do débito geralmente não fica a cargo das pessoas físicas; na aplicação da medida de equidade atribuída de acordo com a situação avaliada; e, como conclusão, na limitação da solidariedade, mas sem redução do débito.
A proposta de acórdão sugerida pelo ministro relator foi acolhida pela maioria do Plenário do TCU, com voto vencido do ministro Walton Alencar. No acórdão, há três indicativos relevantes para casos futuros — considerando que a aplicação do precedente já se iniciou nas sessões seguintes, mesmo sem a divulgação da íntegra do acórdão. O primeiro será o levantamento de dados relacionados às imputações de débito e multa pelo TCU, de modo a apresentar os resultados com periodicidade semestral à Presidência; o segundo será a avaliação de possíveis impactos sobre os processos já julgados; e o terceiro será o estudo quanto à possibilidade de se fixar como competência do Plenário o reconhecimento da desproporção entre a gravidade da culpa e o dano ao erário acarretado.
[1] O exemplo contido no voto ilustra melhor o raciocínio: “Em 2017 (último exercício com dados disponível), as 50 maiores construtoras do Brasil faturaram aproximados R$ 36 bilhões, perfazendo uma média de R$ 720.779.000,00 por empresa1. Esse dado pode ser comparado com a renda per capita mensal do 1% mais rico da população brasileira em 2023 (último exercício disponível) – R$ 20.664,00 mensais ou R$ 247.968,00 anuais2. Assim, a pessoa jurídica teria capacidade de pagamento 2.906 vezes maior do que o mencionado grupo de pessoas físicas (R$ 720.779.000,00 / R$ 247.968,00). Dessa forma, o débito a ser imputado seria de R$ 141.939,10 (R$ 412.475.016,70 / 2.906)”.
[2] Cf.: “Uma outra forma de aferição seria considerar o benefício indevido obtido pela empresa na contratação com a renda da pessoa física. No caso concreto, a empresa obteve um faturamento ilícito de R$ 412 milhões por um período de cinco anos (R$ 82,5 milhões/ano). Assim, esse faturamento ilícito (débito) é 88,7 vezes maior que o salário médio anual de um membro da diretoria estatutária (R$ 82.495.003,34 / R$ 929.867,77) e 332 vezes o rendimento do estrato de 1% do IBGE (R$ 82.495.003,34 / R$ 247.968,00, indicando débitos de R$ 4.649.338,85 (R$ 412.475.016,70 / 88,7) e R$ 1.242.394,60 (R$ 412.475.016,70 / 332), respectivamente”.
Publicado originalmente no ConJur.
por Giamundo Neto Advogados | set 25, 2024 | Artigo
Camilo Giamundo e Leonardo Muradian Cundari
O impacto da reforma tributária no Brasil sobre contratos públicos, destacando projetos de lei que buscam garantir o reequilíbrio econômico-financeiro durante a transição tributária.
O Congresso Nacional aprovou, no final de 2023, a emenda constitucional 132/23, que estabeleceu as bases da reforma tributária no Brasil. O objetivo dessa reforma é objetivo de simplificar o sistema tributário nacional e dar voz ao cumprimento dos princípios constitucionais da tributação, unificando cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) em uma cobrança única, dividida em dois níveis federativos: o IVA – Imposto sobre Valor Agregado, formado pela CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência da união, e o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, cujo lançamento competirá concorrentemente a Estados, DF e municípios. Além disso, prevê-se a criação do IS – Imposto Seletivo, de finalidade extrafiscal, incidente sobre os bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Foram longos anos de discussão no parlamento, com o Poder Executivo e a sociedade civil, que culminaram, enfim, na aprovação do texto-base da EC 132/23, trazendo importantes alterações na CF/88.
Nesse sentido, deu-se início, no Congresso, a discussões acerca da regulamentação da reforma tributária. Foram apresentados, até então, treze projetos de lei que pretendem normatizar os mais diversos elementos incluídos na Constituição pela EC 132/23 e que demandam disposições infraconstitucionais para seu melhor funcionamento e eficácia.
Tratando especificamente do tema deste artigo, sobre o impacto da reforma sobre os contratos públicos, dois projetos de lei são relevantes: (i) o PLP 68/24, que se propõe a instituir o IBS, o CBS e o IS, e (ii) o PLP 33/24, que define instrumentos de ajustes nos contratos administrativos firmados antes da entrada em vigor da lei instituidora do IBS e do CBS.
Em primeiro lugar, o PLP 68/24 reserva um capítulo dedicado ao reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos de longo prazo. Os arts. 362 a 366 do projeto discorrem, entre outros, sobre os elementos de determinação da carga tributária efetivamente suportada pela contratada para fins de reequilíbrio, considerando a possibilidade de repasse a terceiros do encargo financeiro dos tributos, assim como os efeitos da não cumulatividade nas aquisições e custos incorridos pela contratada.
Além disso, os mecanismos para a recomposição da equação financeira são igualmente previstos, sendo eles: a revisão dos valores pactuados; compensações financeiras e ajustes tarifários, inclusive a título de aporte de recursos ou contraprestação pecuniária; renegociação de prazos e condições de entrega ou prestação de serviços; elevação ou redução de valores devidos à Administração Pública, inclusive direitos de outorga; e transferência, a uma das partes, de custos ou encargos originalmente atribuídos à outra, a depender da maior ou menor onerosidade que poderá recair a cada uma das partes contratantes.
Entretanto, a redação do art. 362, §2º, vai no sentido de permitir a revisão de contratos que, inclusive, já possuam previsão dos impactos tributários supervenientes na matriz de risco. Isso porque, as consequências incalculáveis da reforma tributária, que não podem ser matematicamente previstas durante a transição, impõem que seja revisitada a alocação inicial dos riscos, cuja onerosidade decorrente poderá recair, em casos concretos, tanto à Administração quanto à empresa contratada, o que, por enquanto, não há como afirmar.
Em segundo lugar, o PLP 33/24 se aprofunda ainda mais na questão relativa à dinâmica dos contratos públicos e estipula ferramentas de recomposição econômico-financeira de contratos administrativos firmados antes da vigência da lei complementar que instituirá tais tributos. Seu objetivo é neutralizar eventuais externalidades negativas que possa vir da incidência dos novos tributos sobre contratos de longo prazo envolvendo infraestrutura e as diversas modalidades de concessões de serviço público.
A redação do projeto de lei 33/24 leva a crer que o legislador tem se preocupado com a crucial celeridade, por parte da administração, no atendimento dos pleitos de reequilíbrio durante o período de transição do regime tributário. Para tanto, se aprovado o Projeto, será dever de ofício da administração instaurar o procedimento de reequilíbrio, caso não tenham sido instaurados até 30 de junho de 2026.
Após esta data, o PLP determina que seja dada tramitação prioritária aos procedimentos administrativos relacionados a reequilíbrio do contrato. Além disso, o §7º do art. 2º define métodos de “reequilíbrio cautelar”, de caráter antecipatório, caso o Poder Público não tenha recomposto a equação financeira até o prazo estipulado (31 de dezembro de 2026).
As medidas previstas são, dentre outras, elevação das obrigações assumidas pela Administração Pública e pagamento direto de valores ao contratado a título de indenizações, ressarcimentos ou similares.
Além disso, a depender da natureza do contrato, o projeto pretende estabelecer mecanismos cujo contratado poderá dispor a seu critério para mitigar os efeitos do desequilíbrio, em caso de não conclusão do procedimento administrativo no prazo previsto ou de não implementação do reequilíbrio cautelar. Alguns deles estão previstos nos §§ 9º e 10 do mesmo art. 2º, e são: (1) acréscimo de valores às contraprestações devidas pelo Poder Público; (2) implementação de descontos sobre outorgas vencidas ou vincendas; e (3) acréscimo do valor da diferença entre as alíquotas atuais e as alíquotas dos novos tributos nos anos subsequentes.
Outro ponto importante é que o PLP 33/2024 pretende afastar a incidência de IBS e CBS sobre as receitas de construção, recuperação, reforma, ampliação ou melhoramento da infraestrutura, ou decorrentes de quaisquer direitos de natureza regulatória, cuja contrapartida seja ativo intangível representativo de direito de exploração, assim como sobre as receitas decorrentes da venda de bens do ativo não circulante, classificado como investimento, imobilizado ou intangível.
Essas medidas são importantes para não ocasionar eventual onerosidade excessiva do setor de infraestrutura, que depende do efetivo recebimento de contraprestação justa do serviço, além de buscar evitar a perda de arrecadação dos entes federativos, que precisam manter as obras e os serviços públicos em andamento, de modo que a alteração do sistema tributário não reflita uma desvantagem a nenhuma das partes contratantes.
Vê-se que não há dúvidas quanto à existência do direito material das contratadas em obter o reequilíbrio da equação inicial, principalmente considerando que a própria Teoria da Imprevisão, em seu molde clássico, aloca o risco tributário ao encargo da Administração Pública, na esfera do chamado “fato do príncipe” (aliás, expressamente previsto no caput do art. 2º do PLP 33/24). Mesmo assim, faz-se necessária a elaboração de critérios procedimentais apropriados que auxiliem as contratadas a buscar o reequilíbrio com transparência e celeridade, concretizando a norma do art. 37, XXI, da CF/88.
Por fim, outra questão que surge é acerca do período de transição, tendo em vista a implementação da Reforma e sua regulamentação. Nesse sentido, para além da previsão de aumento gradual das tarifas de acordo com as novas alíquotas até 2030, o art. 3º prevê a possibilidade de que as tarifas praticadas em contratos públicos de longo prazo possam ser revisadas e implementadas pelas próprias concessionárias, devendo ser formalmente comunicada ao órgão responsável pela fiscalização. Além disso, o art. 6º permite a compensação dos créditos de PIS e Cofins a que as contratadas façam jus até o final do prazo legal, isto é, 31 de dezembro de 2026.
A partir deste panorama geral da Reforma Tributária e dos projetos de lei complementar que pretendem regulamentar a EC 132/23, ao que importa ao setor de infraestrutura e contratos públicos, é que se espera a tutela do direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, garantindo-se a manutenção e continuidade das obras e serviços públicos, sem que o particular contratado seja onerado indevida e injustamente.
É certo que tal reforma, de magnitude nunca antes vista no direito tributário brasileiro e com claros reflexos no direito administrativo, provocará alterações profundas em diversos setores da economia e da sociedade, dentre os quais o mercado de infraestrutura e de contratos públicos, razão pela qual estima-se a possibilidade de um número considerável de pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro que serão apresentados, cabendo à Administração Pública, aos órgãos de controle e ao Poder Judiciário a serenidade e imparcialidade para enfrentar cada caso e manter, de um lado, a efetiva prestação do serviço público, e, de outro, a justa remuneração do capital, nos termos inicialmente acordados e constitucionalmente garantidos.
Publicado orginalmente no Migalhas.