Produção da prova técnica nos tribunais de contas

Por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni

De caráter muitas vezes técnico, os processos de fiscalização conduzidos pelos tribunais de contas são demarcados por uma linguagem própria, que envolve não somente o debate legal ou normativo sobre a ação pública, mas também aspectos contábeis, financeiros, orçamentários e de engenharia que fogem à análise de mera subsunção legal. Por decorrência, a prova produzida nesses processos não é de simples adequação normativa, mas de efetiva demonstração de elementos que envolvem diferentes áreas do conhecimento científico.

Nesse sentido, os contornos da prova produzida nos processos conduzidos pelos tribunais de contas — aqui compreendidos desde as auditorias de atos e contratos até as prestações de contas de gestão — são diversos e, muitas vezes, superam a demonstração documental, demandando um conhecimento especializado de determinadas temáticas de cunho técnico. Essa realidade está especialmente presente nas auditorias de contratos de engenharia, que não raramente envolve tanto um conhecimento próprio da engenharia de custos e aplicação de referenciais de preços, como também da engenharia civil, relativamente à adequação do custo àquela atividade precificada.

Tem-se assim, em muitos casos, a necessidade de se produzir uma prova de natureza técnica que, em algumas situações, acaba por se assemelhar a uma prova pericial, visto que envolve o conhecimento técnico em dada área/temática, a análise pormenorizada de elementos igualmente técnicos e um terceiro imparcial responsável por essa avaliação. Essa prova contrapor-se-ia, em termos técnicos, às avaliações realizadas pelas unidades de fiscalização dos tribunais de contas, geralmente dotadas de relevante especialização nas temáticas para as quais voltadas e que, por isso mesmo, usam uma linguagem nem sempre apreensível pelos gestores públicos e demais jurisdicionados.

Nesse contexto, a produção de documentos técnicos e o debate qualificado entre profissionais detentores de um mesmo conhecimento científico acabam por criar um cenário em que a prova técnica — ou pericial se assim preferível denominar — estão diretamente conectadas ao próprio direito ao contraditório e à ampla defesa. O debate jurídico, como mencionado, acaba sendo secundário e por certo desprezado se dissociado de elementos técnicos comprobatórios das alegações.

Apesar da relevância dessa temática, são poucos os tribunais de contas que permitem expressamente em seus normativos a produção da prova técnica, especialmente aquele de natureza pericial, assim entendida a que envolva um terceiro imparcial opinando tecnicamente sobre determinada matéria. Pelo contrário, é recorrente o entendimento de que o processo de controle não prevê esse tipo de prova [1].

Veja-se que, embora se desconheça qualquer vedação ou inadmissão por parte dos tribunais de contas para o recebimento da prova de caráter técnico na forma documental — a qual, de qualquer forma, estaria contemplada pela cláusula geral do devido processo legal —, essa espécie não necessariamente contemplará a complexidade necessária ao esclarecimento da matéria posta em debate. Em verdade, essa é a questão central. Não há efetivo debate, sendo os trabalhos técnicos recebidos como um elemento documental adicional, sem o mesmo peso de um laudo pericial.

Ainda, a questão da regulamentação do tema no âmbito das cortes de contas — bastante reduzida, como mencionado — é mais do que um simples detalhe, visto que confere segurança à parte para que possa se valer dessa prerrogativa de forma efetiva e sem limitações. Por outro lado, na atualidade, apenas cinco tribunais de contas possuem alguma disposição específica sobre o tema [2], com especial destaque para o Tribunal de Contas dos municípios do Pará [3] e o Tribunal de Contas do Município de São Paulo [4], que possuem regulação mais exaustiva sobre o tema, e para o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro [5], que autoriza a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.

Com efeito, a falta de previsão normativa adequada ou o indeferimento desse tipo de prova sob o pretexto de que se coloca como medida dispensável, acaba por levar à desnecessária judicialização [6]. Sobre o tema, inclusive, o Supremo Tribunal de Federal possui relevante precedente em sede de mandado de segurança impetrado em face de decisão do Tribunal de Contas da União, em que consignou a impossibilidade de indeferimento de prova pericial fundamentadamente requisitada pela parte enquanto mecanismo constitucional de defesa [7].

Por outro lado, a aceitação da prova pericial torna mais segura e certeira a decisão para o próprio órgão controlador, garante a plenitude de defesa ao seu jurisdicionado e, sobretudo, dá ensejo a um diálogo mais qualificado, que permita que também a parte ou responsável possa contrapor os argumentos e elementos técnicos produzidos pelas cortes de contas em sua inegável especialização. Nem mesmo eventual malefício da redução da celeridade seria pertinente como argumento contrário a esse tipo de prova, na medida em que a tecnicidade já é inerente aos processos de controle.

Por fim, a viabilização desse tipo de prova, mesmo para os tribunais que não a tenham previsto de forma expressa, pode se sustentar na aplicação subsidiária ou supletiva das disposições do Código de Processo Civil, como afinal autoriza a próprio diploma processual [8], adaptando os procedimentos judiciais às peculiaridades do processo de controle, como se já vem fazendo com diversos outros institutos dessa natureza[9], não havendo, como pontuado, empecilhos procedimentais que efetivamente impeçam essa ampliação da fase probatória no âmbito dos tribunais de contas.


NOTAS

[1] Nesse sentido, vide enunciado disponibilizado pelo Tribunal de Contas da União: “O processo de controle externo, disciplinado pela Lei 8.443/1992 e pelo Regimento Interno do TCU, não prevê a produção de prova pericial, cabendo ao responsável trazer aos autos os elementos que entender necessários para sua defesa, inclusive laudos periciais, o que prescinde de autorização do Tribunal” (TCU. Acórdão nº 5.040/2022 – 2ª Câmara, Relator Ministro Bruno Dantas, Sessão de 06/09/2022).

[2] São os casos das disposições dos regimentos internos do TCE-AL (art. 129, III), do TCE-PA (art. 77), TCM-PA (art. 454), TCM-RJ (art. 138) e TCM-SP (art. 124).

[3] Cf.: “Art. 454. (…) § 1º. A requerimento do responsável, do Ministério Público de Contas dos Municípios do Estado do Pará ou de terceiro interessado, bem como por proposição do Relator, observada a complexidade da matéria ou a especificidade da prova a ser produzida ou apreciada, proceder-se-á com a realização de perícia técnica ou científica especializada. § 2º Em quaisquer das hipóteses fixadas no § 1º deste artigo, competirá ao Tribunal Pleno, a autorização para realização de perícia. § 3º Na apreciação do requerimento de produção de prova pericial, deverão ser observados, impositivamente, a sua imprescindibilidade para apuração dos fatos; a complexidade e especificidade da matéria e, ainda, a inexistência de técnicos habilitados, no âmbito do TCMPA, para apreciação e/ou produção da prova. § 4º Aplicar-se-á, no âmbito do TCMPA, quanto ao requerimento e demais procedimentos periciais, quando deferidos pelo Tribunal Pleno, as regras fixadas nos artigos 464 a 480, do Código de Processo Civil Brasileiro, exceto quanto às custas e honorários periciais. § 5º As custas e honorários periciais serão suportados pela parte requerente, a qual será instada a efetuar seu pagamento, no prazo máximo de 10 (dez) dias, sob pena de desistência tácita do pedido de produção de prova”.

[4] Cf.: “Art. 124 – A critério do Relator ou Juiz Singular, integrarão a instrução processual todos os elementos necessários ao julgamento dos feitos, a saber: I – a documentação referida no artigo 2º, § 1º, deste Regimento; II – a inspeção pessoal efetivada pelo Conselheiro ou por funcionário por ele especialmente designado; III – os dados e relatórios de auditorias, acompanhamentos, inspeções e análises; IV – os pareceres dos órgãos técnicos do Tribunal; V – o depoimento pessoal das partes; VI – a oitiva de testemunhas; VII – a juntada de documentos; VIII – a exibição de documento ou prova material; IX – o laudo pericial; X – todas as demais provas admitidas em direito”.

[5] Cf.: “Art. 138. As provas que a parte quiser produzir perante o Tribunal devem ser, preferencialmente, apresentadas de forma documental, mesmo as declarações pessoais de terceiros.§ 1º Quando requeridas diligências e perícias pela parte, serão aplicadas, no que couber, as disposições do Código de Processo Civil. § 2º As provas propostas pela parte somente poderão ser recusadas pelo Tribunal, mediante decisão fundamentada, quando forem ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.

[6] Nesse sentido, vide decisão do TRF5, questionando a limitação à prova pericial no âmbito do TCU: “Outrossim, analisando-se a Tomada de Contas Especial n.º 021.409/2003-4, é possível perceber que a demandante, reiteradas vezes, requereu a realização de perícia técnica com profissional especialista em portos, nos termos determinados pelo próprio TCU no Acórdão n.º 1051/2003- Plenário, tendo seus pedidos sumariamente negados, sob o argumento simplista de que o quadro técnico da SECEX/RN teria know-how suficiente para analisar a questão, de modo que é clarividente que houve cerceamento de defesa por parte da demandada” (TRF5. Apelação nº 0810399-40.2016.4.05.8400. Relator Desembargador Federal Leonardo Carvalho. Julgado em 22/05/2020).

[7] Trata-se do Mandado de Segurança nº 26.358, relatado pelo Ministro Celso de Mello.

[8] Cf.: “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.

[9] É o que ocorre, por exemplo, com a prova emprestada, prevista no art. 375, do CPC, e comumente utilizada em processos do TCU.

Artigo publicado no Consultor Jurídico.

Expectativas e avanços com relação à reforma tributária: melhorias nos impostos sobre o consumo e melhoria institucional

por Christian Fernandes Rosa

A CCJ do Senado aprovou, em 7 de novembro, o texto base da reforma tributária, um passo significativo para a reestruturação da tributação no Brasil. No entanto, o texto enfrenta críticas, especialmente do setor privado, preocupado com possíveis aumentos na carga tributária. O setor governamental também enfrenta desafios na adaptação a uma nova realidade de gestão coletiva de recursos, afetando Municípios e Estados.

No último dia 7 de novembro, a Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, do Senado aprovou o texto base da proposta de reforma tributária, em um passo significativo para a tão esperada reestruturação do arranjo jurídico da tributação no Brasil.

O texto não ficou livre de críticas de diversos setores. Dentre representantes do setor privado, a preocupação se deu especialmente em razão da possibilidade de incremento da carga tributária para algumas atividades econômicas – isso em um país que é sempre listado como um dos mais destacados quando o assunto é a voracidade arrecadatória.

No setor governamental, está claro que Municípios e Estados ainda vão dispender muitos esforços para se adaptar a toda uma nova realidade em que o pacto federativo passa a se manifestar em um modelo de gestão coletiva desses recursos, tão necessários ao desempenho de funções, políticas e serviços públicos.

Independentemente disso, é notável a evolução que o projeto traz no tema dos impostos sobre o consumo. Conforme bem lembra um estudo publicado pelo IPEA em 2022 sobre os sistemas tributários dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, essa modalidade de tributos é a maior fonte de arrecadação da maioria dos países desenvolvidos e daqueles em desenvolvimento, tais como o Brasil. Nesse mesmo levantamento do IPEA, destacaram-se as recomendações da OCDE sobre a importância da eliminação de múltiplos impostos sobre atividades econômicas associadas ao consumo.

A reunião e simplificação de impostos sobre o consumo, já adotada nos países mais desenvolvidos membros da OCDE, é um dos grandes avanços do projeto aprovado pela Comissão do Senado e está alinhada com um esforço por reduzir a complexidade e burocracia nas operações comerciais. Ao passo que a Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS reunirá impostos federais como o PIS, Cofins e IPI, o novo Imposto Sobre Bens e Serviços – IBS agregará os antigos impostos estaduais e municipais sobre o consumo (ICMS e ISS, respectivamente).

A proposta de reforma tributária está longe de representar um alívio definitivo para a atividade econômica brasileira. Mas, em um país em que o sistema federativo e a complexidade histórica dos regimes tributários sempre foram um óbice considerado intransponível, a racionalização trazida pelo texto aprovado pela CCJ, especialmente na seara dos impostos sobre o consumo, é notícia a ser comemorada.

Dentre outros fatores, a medida, se aprovada, constituirá em um pilar importante de uma plataforma jurídico-institucional necessária para a retomada do desenvolvimento econômico nacional, baseado em investimentos e na dinamicidade do mercado interno.

Artigo originalmente publicado no Portal Migalhas, em 10.11.2023.

Artigo: Como ficam os contratos vigentes em caso de privatização de uma estatal?

Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni

O debate sobre a privatização de empresas estatais é bastante presente no cotidiano nacional e, de tempos em tempos, ganha algum reforço adicional a depender dos interesses postos. Nos últimos meses, a discussão que toma corpo é sobre a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), mas outras grandes estatais já estiveram em meio a esse mesmo debate, a exemplo dos recentes movimentos com a Eletrobras, a TAG e a Companhia Docas do Espírito Santo.

Embora relevante o debate sobre os efeitos gerais do fenômeno da privatização no Brasil, este artigo centra-se em uma questão de cunho mais prático: uma vez formalizada a privatização de uma estatal o que acontece com os contratos vigentes? Isto é, os contratos celebrados sob o influxo de normas de Direito Público podem ser mantidos ou devem rescindidos [1].

A contribuição com a resposta desses questionamentos perpassa por algumas questões preliminares. A primeira delas é definir a que nos referimos ao empregarmos o vocábulo “privatização”. Num segundo momento, é importante discutir a regência dos contratos discutidos — se submetidos à Lei Federal nº 8.666/1993 ou à Lei Federal nº 13.303/2016. Por fim, necessário avaliar a posição da estatal no contrato analisado, ou seja, se figura como contratante ou contratada.

Sobre o primeiro ponto, emprega-se a proposta classificatória de Mância e Menegat, que adotam o termo “despublicização” para os casos “em que há repasse da titularidade de bens e/ou atividades do Estado à iniciativa privada, com a redefinição dos limites de atuação do setor público e o setor privado” [2]. Dentre as diferentes técnicas de despublicização, trata-se, aqui, da alienação de participação societária, em que o Estado aliena as cotas/ações detidas à inciativa privada, tornando a estatal [3] uma pessoa jurídica integralmente regida pelas regras de Direito Privado.

Com relação ao regime contratual, apesar de a edição da Lei das Estatais ter ocorrido há mais de seis anos, as regras de transição de regime, o prazo de duração de contratos (principalmente aqueles firmados por escopo) e o tempo de adaptação necessário fazem com que muitas estatais ainda detenham contratos regidos pela Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Nesse sentido, é comum que algumas estatais, ainda hoje, possuam em vigência tanto contratos regidos pela Lei nº 13.303/2016 como pela Lei nº 8.666/1993.

No âmbito da Lei nº 8.666/1993 não há uma grande diferença de regime dos contratos firmados pelas estatais prestadoras de serviços públicos daquele aplicável a qualquer outro órgão ou entidade da administração pública direta. Os contratos dessas estatais eram submetidos aos influxos do Direito Público, com a flexibilização admitida apenas para as estatais voltadas à exploração de atividade econômica. Nesse sentido, pelo menos no caso das estatais prestadoras de serviços públicos, pode-se dizer que a figura que regia as relações com terceiros, como regra, era a de um contrato administrativo propriamente dito [4].

Com a publicação da Lei nº 13.303/2016 almejou-se um regime mais flexível, em que os contratos celebrados pelas estatais, de modo geral, fossem contratos de Direito Privado, sem a presença de cláusulas exorbitantes [5]. Com efeito, a norma não estabelece, propriamente, cláusula exorbitantes a favor das estatais, embora ainda existam alguns poucos condicionamentos de regime especial, motivando a criação de uma categoria específica de “contratos típicos das empresas estatais” [6].

Por fim, a posição da estatal no contrato também pode ter reflexos na análise realizada, seja porque eventuais cláusulas exorbitantes apenas estarão presentes quando a estatal ocupe a posição ativa de contratante no ajuste, seja porque existem figuras que admitem a contratação direta apenas em razão da qualidade dessas empresas enquanto entidades pertencentes à administração pública [7].

Postas essas diversas questões, a interconexão dos temas ajuda a traçar alguns diferentes panoramas e conclusões, a depender do polo contratual em que se encontra a estatal e respectiva lei regente.

Nos contratos firmados sob a égide da Lei nº 13.303/2016, em que já há um natural afastamento da tipificação de contrato administrativo — devendo ser celebrado instrumento contratual regido pelo Direito Privado —, a privatização da estatal não deverá ter, como regra, grandes impactos ao ajuste, em razão de sua submissão ao regime privatista.

De outro lado, nos contratos firmados sob a égide da Lei nº 8.666/1993, em que a estatal figure na posição de contratada, a manutenção do contrato com a estatal privatizada é possível. Para tanto, devem ser mantidas as condições gerais da sua contratação, podendo, inclusive, ser realizada a prorrogação desse ajuste, desde que tal possibilidade esteja prevista no instrumento convocatório e demonstrados o interesse público e a vantajosidade da medida, conforme decidido pelo Tribunal de Contas da União, na resposta à consulta objeto do Acórdão nº 2.930/2019-Plenário.

Por fim, nos contratos submetidos à Lei nº 8.666/1993, em que a estatal atue na posição de contratante, a privatização tem impacto direto e imediato para as contratações vigentes, cuja manutenção fica condicionada a uma ampla revisão de cláusulas exorbitantes, desde que haja interesse das partes em manter o vínculo contratual. Afinal, todos os pressupostos autorizadores da presença da exorbitância desaparecem em razão da mudança de regime jurídico, não mais se justificando a posição de privilégio. Além disso, essa mudança de regime e a maior configuração da autonomia privada autorizam tanto que as partes renegociem as bases do contrato, como optem por rescindi-lo, nesse último caso sem a penalização que seria inerente ao regime sancionatório dos contratos administrativos.

 

[1] A discussão se alinha e complementa as relevantes linhas iniciais traçadas por Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza e Pedro Henrique Braz de Vita em artigo de opinião publicado neste mesmo portal sobre os efeitos da privatização de empresas estatais sobre vínculos contratuais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-05/opiniao-privatizacao-estatais-vinculos-preexistentes. Acesso em 12/10/2023.

[2] MÂNCIA, Fernando Borges; MENEGAT, Fernando. Teoria jurídica da privatização: fundamentos, limites e técnicas de interação público-privada no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 106.

[3] Ainda na lição de Mância e Menegat, a constituição de uma estatal, por si só, já configura espécie de privatização, na modalidade da “descentralização”, caracterizando espécie de “fuga para o Direito Privado”, na relevante conceituação de Maria João Estorninho (MÂNCIA, Fernando Borges; MENEGAT, Fernando. Teoria jurídica da privatização: fundamentos, limites e técnicas de interação público-privada no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017, p. 106).

[4] Cf.: “Os contratos que tais empresas firmem para atendimento das finalidades a que estão legalmente prepostas — e assim também os efetuados pelas empresas estatais encarregadas da promoção de obras públicas — são contratos administrativos, nos mesmos termos e condições em que o seriam os travados pela Administração direta” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 215).

[5] Cf.: “As empresas estatais, como pessoas jurídicas de direito privado, em princípio celebram apenas contratos de Direito Privado, desprovidos de cláusulas exorbitantes, salvo no que essas consubstanciarem poderes contratuais unilaterais constantes dos próprios contratos de direito privado (ex.: o poder de denúncia vazia – rescisão unilateral – nos contratos de locação)” (ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 185).

[6] Esse é o tratamento dado por STROPPA, Christianne de Carvalho. O regime jurídico dos contratos das empresas estatais prestadoras de serviços públicos na Lei de Responsabilidade das Estatais – Lei nº 13.303/2016. 2019. 213f. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.

[7] É o caso das dispensas contidas no artigo 24, incisos VIII e XVI, da Lei nº 8.666/1993.

 

Artigo: Algumas notas sobre as agências reguladoras como poder concedente

Artigo: Algumas notas sobre as agências reguladoras como poder concedente

por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni

Em abril deste ano, sem muito alarde público, foi apresentado no Senado Federal o Projeto de Lei nº 2.263/2023, de autoria do senador Jorge Kajuru, tendo por objeto a inclusão de um parágrafo ao artigo 14 da Lei Federal nº 8.987/1995, que vedaria a realização de licitação para a concessão de serviços por parte das agências reguladoras.

Na justificativa do projeto indicava-se que o sistema jurídico teria atribuído às agências reguladoras funções voltadas à normatização infralegal e à fiscalização dos serviços concedidos, o que conflitaria com eventual atuação na licitação para a concessão das atividades também reguladas, em afronta aos princípios jurídicos aplicáveis à matéria.

Embora tenha tramitado de forma célere nos últimos meses, o projeto acabou sendo arquivado no último dia 28/9/2023, a requerimento do próprio autor, e, mesmo sem ter avançado, trouxe à tona um debate que muitas vezes fica na superfície. De fato, a realização da licitação dos serviços públicos pelas agências reguladoras ocasiona um conflito técnico ou de interesse capaz de prejudicar sua atividade ou o próprio serviço prestado?

De modo geral, o debate sobre a temática encontra duas principais posições antagônicas. Para uma primeira linha de pensamento, o exercício da função concedente por parte das agências reguladoras comprometeria a sua (típica) atribuição regulatória. Por outro lado, há quem pondere que sequer existiria uma efetiva delegação do poder concedente, na medida em que a atuação das agências estaria adstrita à elaboração dos editais e fixação de condições gerais de contratação, sem uma definição específica de execução da política formulada, ainda a cargo da administração direta [1].

Sabe-se que o modelo de regulação adotado no Brasil, apesar de fundar-se na experiência estadunidense [2] como tantos outros sistemas, também encontra oposições distintivas de um experimento com um histórico próprio. Um dos aspectos que caracteriza o desenvolvimento da temática no país é o fato de a criação das agências reguladoras coincidir temporalmente com a própria reabertura democrática do país e com um pensamento de reforma estatal por intermédio de um processo abrangente de desestatização [3], de modo que o aprimoramento da tecnicidade e independência das agências no Brasil parece se relacionar muito mais com a necessidade de atração do investimento privado, a partir da ampliação da segurança jurídica, do que necessariamente à regulação dos serviços públicos.

O contexto diferenciado de desenvolvimento das agências reguladoras no Brasil, no entanto, não afasta o importante papel da regulação enquanto finalidade precípua das agências. Por outro lado, um discurso reducionista, que desconsidera outras importantes atuações desses órgãos — a exemplo da sua relevante função de intermediação de conflitos —, também não se mostra condizente com a realidade dos serviços públicos em nosso país.

Pela ausência de uma regulamentação geral e pela indefinição também presente no debate doutrinário, não há uma resposta única sobre a possibilidade de atuação das agências reguladoras nas concessões de serviços públicos. A matéria, assim, acaba regulada de forma casuística, a depender do setor regulado [4].

Sob o ponto de vista pragmático, são muitas as idiossincrasias da máquina pública brasileira que justificariam a manutenção das agências como poder concedente. Um desses aspectos seria o fato de que parte dos ministérios e secretarias setoriais não possuem quadro fixos para promover processos complexos de delegação de serviço público. As agências, de outro lado, costumam possuir equipes qualificadas, com comissões permanentes de outorga, cujos membros são dotados de independência funcional, o que tende a conferir maior estabilidade para a consecução de projetos.

Sendo uma realidade posta — não necessariamente exclusiva de nosso país [5] —, ao invés de se coibir essa atuação sem um debate mais amplo com os stakeholders dos diferentes setores da infraestrutura e da própria sociedade, enquanto usuária dos serviços regulados, parece prudente se identificar se os riscos, de fato, excedem as oportunidades, e, a partir disso, se pensar em modelos jurídicos que se revelem adequados à realidade, mas também aos arranjos normativos comumente empregados em nosso sistema.

De qualquer forma, pensando-se em um modelo institucional ideal, temos que o mais adequado seria a administração pública central figurar como poder concedente. A atribuição de tal tarefa aos órgãos reguladores pode tanto afastá-los de sua natureza como impor riscos à sua necessária independência. Não é da essência das agências reguladoras funcionar como parte contratual, sob o risco de comprometimento de sua neutralidade para compor os interesses envolvidos no setor regulado. Trata-se, por certo, de temática a ser debatida de forma mais ampla, de modo a se assegurar o fino equilíbrio entre a higidez do sistema jurídico-constitucional vigente e os direitos e garantias individuais e coletivos assegurados pela adequada prestação dos serviços públicos.

 

[1] A síntese desse debate é muito bem delineada em ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 590-593.

[2] O surgimento da regulação nos Estados Unidos da América se deu em meio à crise do capitalismo, em que havia demanda por uma regulação estatal forte, impedindo o domínio do capital privado. Para um histórico mais completo do tema, vide FAJARDO, Gabriel Ribeiro. Agências reguladoras como poder concedente nos contratos de concessão. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais, 2023.

[3] BINENBOJM, Gustavo. Agências reguladoras independentes e democracia no Brasil. Revista de Direito Administrativo, v. 240, p. 147–167, 2005. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43622. Acesso em 29/9/2023.

[4] De modo exemplificativo, cite-se o caso do setor portuário, em que há clara distinção entre as funções assumidas pelo Poder Concedente, exercido pela União, por intermédio do Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, e as funções da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), conforme previsões dos artigos 1º a 3º do Decreto Federal nº 8.033/2013.

[5] Em Portugal, por exemplo, a agência reguladora dos serviços de mobilidade e dos transportes é autorizada a figurar como poder concedente, conforme dispõe o artigo 3º, item 4, alínea “r”, do Decreto-Lei nº 236/2012: “Art. 3º. (…). 4 – São atribuições do IMT, I. P., em matéria de infraestruturas rodoviárias, incluindo matérias específicas relativas à rede rodoviária nacional: (…) r) Exercer, no âmbito da gestão e exploração da rede rodoviária, os poderes e as competências atribuídas ao concedente Estado, por lei ou por contrato, exceto se estes previrem expressamente a intervenção dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e dos transportes, sem prejuízo da faculdade de subdelegação”. A autorização conferida a essa agência, contudo, parece ser isolada no país, na medida em que agências de outros setores regulados não possuem tal atribuição (vide: Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos, art. 24, 1º, f, da Lei 10/2014; Autoridade Nacional da Aviação Civil, Decreto-Lei 40/2015; Entidade Reguladora de Serviços Energéticos, art. 13 do Decreto-Lei 97/2002; Autoridade Nacional de Comunicações, art. 8º, 2-“b” do Decreto-Lei 39/2015, dentre outros).

 

Artigo originalmente publicado no Portal Consultor Jurídico, em 04.10.2023.

Artigo: Relações perigosas: improbidade e corrupção na interação entre a indústria de saúde e profissionais médicos públicos

por Camillo Giamundo e Joaquim Augusto Melo de Queiroz

  1. Introdução

A interação existente entre profissionais médicos e a indústria de medicamentos e produtos para saúde é um fato inegável. Esta relação funda-se em aspectos intrínsecos e indispensáveis ao desenvolvimento de novas tecnologias. Como se sabe, para que uma molécula pesquisada possa evoluir para um medicamento experimental e, posteriormente, alcançar o status de medicamento comercialmente viável, uma longa trajetória de estudos laboratoriais e ensaios clínicos deverá ser percorrida. Os profissionais médicos são parte indissociável deste processo. Conduzem, por exemplo, as pesquisas clínicas com pacientes voluntários para a avaliação dos novos medicamentos. Também são responsáveis por importante produção de artigos científicos, muitos deles utilizados em dossiês para a concessão de registros sanitários. É natural que assim ocorra. E inclusive desejável. Isso porque este vínculo pode se traduzir em instrumento para a disseminação de conhecimento e como vetor para impulsionar o desenvolvimento de novas terapias. Esta relação não é, contudo, imaculada. Nela subjaz um ponto sensível: o apoio financeiro por vezes estabelecido e a sua influência na independência do profissional para a prescrição dos produtos.

O presente estudo objetiva analisar este elo financeiro e os mecanismos normativos desenvolvidos para reduzir seus efeitos nocivos. Mais especificamente, cuidar-se-á de avaliar este vínculo sob o prisma dos profissionais médicos envolvidos, com enfoque naqueles que desempenham atividades de viés público. Fincadas estas premissas, serão examinadas as hipóteses de caracterização de determinadas condutas como potenciais atos de improbidade administrativa ou mesmo sujeitas à legislação anticorrupção.

 

  1. A relação financeira

A premissa lógica inerente à prescrição de medicamentos e produtos para a saúde repousa na relação de confiança existente entre profissional médico e paciente.

Ao optar por determinado médico, o paciente confia (i) na capacidade técnica e na experiência do profissional escolhido; e (ii) na independência de seu médico para a prescrição do tratamento mais adequado ao seu quadro clínico[1].

Por força desta situação particular da prescrição de medicamentos e de produtos para saúde, consubstanciada na atribuição exclusiva deste mister a profissionais médicos, há a possibilidade de que elementos externos possam eventualmente influenciar a decisão do profissional. E nesse contexto se insere a relação financeira existente entre a indústria de saúde e os profissionais médicos.

A implementação pela indústria de saúde de práticas de cunho financeiro junto a profissionais médicos é um fato inegável. Os recursos utilizados para tanto são múltiplos e com abordagens heterogêneas. Todavia, esta circunstância não configura, por si só e automaticamente, hipótese de conflito de interesse[2].

Conquanto não se ignore a possibilidade de que aspectos financeiros advindos desta relação possam eventualmente influir na prática do profissional, a constatação desse corolário não é algo trivial e que possa ser imediatamente presumido. E os motivos são variados.

De saída, há de se ter presente que os benefícios concedidos pela indústria abarcam ações dos mais variados matizes. Dentre as mais corriqueiras, pode-se assinalar (i) a concessão de prêmios e bonificações; (ii) o custeio de viagens, passagens, hospedagem e alimentação; (iii) o pagamento de despesas para participação em congresso e congêneres; (iv) a concessão de brindes, presentes e outros bens; (v) o pagamento de honorários por consultorias, apresentação de trabalhos científicos, palestras e similares; e (vi) a contratação para atuação em estudos e pesquisas científicas em qualquer fase ou estágio.

Debruçando-se sobre as práticas elencadas, é forçoso convir que parte delas corresponde a atividades usualmente atreladas ao desenvolvimento de novos medicamentos e à produção científica. Pressupor que interações desta natureza necessariamente sugestionariam a autonomia do profissional médico acabaria por estorvar a condução de pesquisas científicas, muitas vezes dependentes de apoio privado para o seu financiamento.

Em relação às práticas que não necessariamente digam respeito à produção científica e à disseminação de conhecimento, alguns autores sustentam que tais medidas poderiam influir veladamente sobre a atividade de prescrição:

“Podemos então conceituar conflito de interesses como um conjunto de condições e circunstâncias que podem influenciar indevidamente o julgamento profissional em relação ao interesse primário (bem-estar e tratamento do paciente, validade da pesquisa) por um interesse secundário (benefício econômico, entusiasmo de notoriedade, prestígio, reconhecimento e promoção profissional), especialmente se considerarmos que brindes ofertados de laboratório aos médicos, embora não necessariamente conduzam a uma situação de conflito de interesses, podem limitar a neutralidade necessária no momento da tomada de decisões clínicas”.[3]

É verdade que este laço pode gerar efeitos inconscientes no profissional prescritor. Todavia, a aferição da correlação entre a concessão de benefícios pela indústria e o seu impacto sobre a prescrição de medicamentos não é tarefa simples, tampouco cartesiana[4]. Aquilatar a exata medida em que determinada benesse possa ter orientado objetivamente a mudança na atividade de prescrição de determinado profissional médico exige exame analítico escorado em extenso repositório de dados. E isso pode não ser suficiente. O exercício de traduzir psique para números pode carregar em si alto grau de subjetividade, caso não sejam utilizadas metodologias coerentes.

Justamente em razão destas idiossincrasias, uma avaliação desta natureza exige o emprego de parâmetros estatísticos sofisticados e procedimentos robustos de data analytics[5]. Este cenário fez sobressair expedientes idealizados para conferir maior transparência ao vínculo financeiro entre a indústria de saúde e profissionais médicos. É dizer: por meio de dados sistematizados há maior chance de uma conclusão fundamentada sobre a existência, ou não de interferência na prática de prescrição, ainda que esta avaliação não esteja absolutamente imune a possíveis distorções.

 

  1. Regulação da relação médico/indústria farmacêutica

A correlação entre a transferência de valores da indústria de saúde para profissionais médicos e o seu eventual impacto na atividade de prescrição de produtos, impulsionou o surgimento de leis e regulamentos para disciplinar tal prática.

Diversos países possuem legislação específica atinente à divulgação da transferência de valores sob as premissas aqui discutidas. O Physician Payments Sunshine Act (Section 6002 da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010), lei norte-americana sobre o tema, tornou-se referência mundial de regramento sobre a matéria. A ponto de inspirar e ser emulado em iniciativas legislativas de diversos outros países.

Trata-se de norma com objetivo bifronte: de um lado, conferir maior transparência aos gastos incorridos pela indústria e aos pagamentos auferidos por profissionais médicos. De outro, restringir o recebimento destes benefícios pelos profissionais de saúde com o fito de promover maior racionalidade econômica ao sistema de saúde. A ratio essendi é a de que haveria uma relação de causa-efeito entre os benefícios concedidos aos médicos e o incremento do número de prescrições de determinados medicamentos, em detrimento de outros. Tal circunstância implicaria a majoração de preços dos produtos prescritos, como fruto desta demanda induzida pela relação financeira entre a indústria e o profissional médico.

Para controlar esse cenário, o Physician Payments Sunshine Act (“PPSA”) estabeleceu, em linhas gerais, a obrigação anual de envio, pelos fabricantes, de informações sobre os pagamentos e as transferência de valores para médicos e para o equivalente a hospitais universitários brasileiros, ou hospitais-escola (teaching hospitals). Tais informações englobam, em síntese (i) o nome do beneficiário; (ii) o endereço profissional do beneficiário e o número de identificação do profissional médico; (iii) o montante do pagamento ou do valor transferido; (iv) as datas de efetivação do pagamento ou do valor transferido; (v) a descrição da forma de pagamento ou da transferência de valor (dinheiro, itens ou serviços em espécie, ações, opções de ações, outros tipos de remuneração de investimentos etc.); (vi) a descrição da natureza do pagamento ou da transferência de valor (honorários consultivos, remuneração por outros serviços que não sejam consultivos, brindes, refeições, custeio educacional, viagens etc.); e (vii) informações específicas sobre pagamentos e transferência de valores relacionados a medicamentos, dispositivos médicos e tratamentos médicos disponibilizados pelo Estado.

A intenção do PPSA é franquear maior transparência na interação financeira entre a indústria e os profissionais médicos, de forma a permitir ao paciente a averiguação quanto à efetiva independência do profissional no ato de prescrição[6].

Conforme esclarece Alex Pereira Leutério, em monografia que aborda esta temática, o PPSA não tenciona interferir diretamente na autonomia dos profissionais médicos para o ato de prescrição de medicamentos:

“Nesse passo, indicamos que a regulação internacional atinente aos conflitos de interesse, especialmente o Sunshine Act, obriga e orienta, significativamente, a elevação do nível de integridade em rotina operacional das indústrias farmacêuticas, por meio de parâmetros de programas de compliance e por códigos de boas práticas médicas, mediante a obrigatória e máxima transparência nos aspectos financeiros da relação médico e indústria farmacêutica, não interferindo, contudo, na autonomia dos profissionais de saúde na oportunidade de prescrição de medicamentos”.[7]

Alguns autores defendem a tese de que a divulgação das informações acerca de pagamentos e transferências de valores poderia, eventualmente, modificar o comportamento dos médicos. O intento seria evitar relações financeiras com a indústria e, assim, se precaver da possível desconfiança dos pacientes, além de reprovações de seus pares ou mesmo de se tornar alvo de exposição jornalística ou de investigação governamental[8].

É certo que, após a publicação do PPSA, os efeitos da nova regulamentação passaram a ser objeto de amplos estudos dedicados a esta problemática[9]. Em alguns destes estudos são apontados efeitos da nova lei em relação às regulamentações até então existentes nos estados norte-americanos. O primeiro deles, a migração de pagamentos e da transferência de valores para outros profissionais médicos habilitados a prescrever, mas não abarcados pelo PPSA (a saber, assistentes médicos e profissionais de enfermaria). O segundo, a possibilidade de que a ampliação da publicidade dos pagamentos e das transferências de valor prejudicasse as relações financeiras legítimas e indispensáveis para a pesquisa de inovação e para o desenvolvimento de novas tecnologias. O terceiro, uma novidade do PPSA em relação às normas estaduais norte-americanas, relativamente à necessidade de divulgação de pagamentos concernentes a estudos, incluindo pesquisas clínicas. Até então, a divulgação de pagamentos desta natureza não era obrigatória na maioria dos estados norte-americanos[10]. O PPSA, por sua vez, estabeleceu uma sistemática de divulgação diferida destes pagamentos, a ser realizada após quatro anos da conclusão do estudo clínico.

Seja como fora, talvez o efeito mais visível do PPSA seja a proliferação de leis nele inspiradas em outros países. A nova legislação ecoou em países de perfis heterogêneos, como (i) França (2011); (ii) Portugal (2013) Dinamarca (2014), Grécia (2014), Bélgica (2016), Canadá (2017), Colômbia (2018) e Itália (2022), dentre outros.

A despeito da profusão de países com legislação nacional específica acerca desta matéria, em parcela expressiva dos países que compõem a União Europeia ainda vigora a sistemática de autorregulação, com fundamento no European Disclosure Code. Trata-se de regramento elaborado pelas indústrias associadas à Federação Europeia de Indústrias e Associações Farmacêuticas (European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations – EFPIA)[11].

 

  1. Sunshine Act do Estado de Minas Gerais (Lei Estadual n. 22.440/2016)

No Brasil, a influência do PPSA foi manifestada pela promulgação da Lei Estadual n. 22440/2016, pelo Estado de Minas Gerais, a qual convencionou-se denominar “Sunshine Act Mineiro”. Trata-se da primeira lei no país a regrar esta matéria.

Referida norma foi declaradamente estruturada a partir a legislação norte-americana, sendo regulamentada pelo Decreto Estadual n. 47.334/2017. Em linhas gerais objetivou:

“(…) tornar as relações na indústria farmacêutica mais transparentes, no sentido de que as empresas atuantes nos processos de produção, fabricação, beneficiamento, distribuição e até comercialização de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos e implantes, deverão comunicar a Secretaria de Estado de Saúde – SES de Minas Gerais, qualquer tipo de benefício ou doação, tais como brindes, passagens, inscrições em eventos, hospedagens, financiamento de etapas de pesquisa, consultoria e palestras, oferecidos para profissionais de saúde com registro em conselho de classe, bem como para seus familiares, acompanhantes e pessoas convidadas, inclusive, com um sistema com acesso público de busca individualizado por médico, permitindo que a sociedade verifique os benefícios recebidos por cada profissional da área da saúde e, com isso, minimize possíveis situações de conflito de interesses no setor da saúde”[12].

Esta precursora lei estadual trouxe disposições voltadas a imprimir transparência ainda maior se comparada ao PPSA. Com efeito, o Sunshine Act Mineiro estabelece o dever de divulgação de informações sem restringir o seu alcance às empresas prestadoras de serviços ou fornecedoras de produtos ao Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse ponto, difere do PPSA na medida em que a legislação norte-americana atribui este dever apenas às empresas fornecedoras de produtos e prestadoras serviços ao sistema público norte-americano. Também diverge do PPSA ao abarcar categorias mais amplas de profissionais da saúde, como enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas etc., e não apenas profissionais médicos.

O Estado de Minas Gerais ainda foi além. Promulgou a Lei Estadual n. 22.921/2018, ditando regras sobre a obrigatoriedade de as empresas de produtos para a saúde e de interesse da saúde informarem ao órgão estadual competente sobre patrocínio destinado à realização de evento científico.

Contudo, malgrado o pioneirismo, as leis estaduais mineiras não se traduziram em movimento de difusão destes preceitos normativos para outros estados da federação. Tampouco houve a promulgação de lei federal acerca desta matéria, inobstante existam projetos de lei em discussão no parlamento.

 

  1. Proposições normativas em tramitação

Conquanto ainda se aguarde um marco regulatório sobre o tema, diversas proposições legislativas federais afloraram após a promulgação do Sunshine Act Mineiro.

Quatro principais projetos de lei tramitam atualmente na Câmara dos Deputados. O primeiro deles, Projeto de Lei n. 7.990/2017, dispõe sobre a transparência e a publicidade de relações financeiras estabelecidas entre a indústria da área de saúde e os médicos. Referido projeto de lei impõe a obrigação de divulgação, pelos fornecedores de produtos para saúde, em seus sítios eletrônicos e em outros meios de divulgação social, de todos os benefícios concedidos aos profissionais da área da saúde[13]. Preceitua ainda a obrigação de publicação destas informações, pelas entidades da União responsáveis pela proteção da saúde e a vigilância sanitária, em seus sítios eletrônicos. E, por fim, assenta a possibilidade investigação de possíveis conflitos de interesse nas relações entre médicos e fornecedores de produtos para saúde[14].

O segundo projeto de lei (PL 11.050/2018)[15] traz previsões praticamente idênticas ao PL 7.990/2017, ao qual está apensado. Já o Projeto de Lei n. 11.177/2018, amplia o espectro de regulação sobre a matéria ao também instituir diretrizes para a divulgação de custos incorridos para o patrocínio de eventos científicos (possivelmente inspirado na Lei Estadual de Minas Gerais n. 22.921/2018). E tece maiores detalhes acerca do sistema de informação[16] e das sanções passíveis de cominação. Por fim, o Projeto de Lei n. 204/2019, também apensado ao PL 7.990/2017, não introduz modificações significativas em relação às demais proposições legislativas, replicando, em suma, os dispositivos dos outros projetos.

Rumores acerca da edição de uma Medida Provisória para o tratamento desta matéria circularam em meados de 2022[17]. Contudo, até o presente momento, não houve apresentação formal de texto legal.

 

  1. Sujeitos das condutas

Uma vez estabelecidos os contornos atinentes às práticas de concessão de benefícios a profissionais de saúde, cumpre verificar a hipótese específica de dispensa destas benesses em favor de profissional que desempenhe atividade de natureza pública, além das consequências desta conduta.

O exercício envolve preliminarmente a avaliação do enquadramento do profissional como agente público, premissa essencial para as etapas subsequentes. Conquanto esta caracterização possa denotar aparente simplicidade, ela embute condicionantes que podem carrear maior complexidade.

Inicialmente, cumpre averiguar se o agente estatal possui vínculo de direito privado ou de direito público com a entidade à qual possui filiação. Caso o vínculo seja de direito privado, incumbe investigar então a existência, ou não, de liame trabalhista.

Paralelamente, o agente estatal detentor de vínculo de direito público, de natureza não política, e civil (não militar, portanto) poderá desempenhar atividades como servidor ou não servidor. Na hipótese de não ser servidor, o exercício de seu mister comporta variados regimes legais, espelhados nas leis ns. 8.666/1993, 8.987/1995, 9.637/1998, 9.790/1999 e 11.079/2004. Caso seja servidor, o agente público será estatutário ou temporário[18].

Sob o aspecto de direito privado, há que se falar, ainda, da figura das pessoas jurídicas da indústria farmacêutica e, eventualmente, seus representantes legais, que também devem observar as regras e premissas legais na relação com o agente público ou o estabelecimento médico/farmacêutico de natureza pública, especificamente quanto à promessa ou concessão de benefícios e vantagens.

 

  1. Subsunção das condutas às tipologias legais

Uma vez definido que o médico efetivamente pratica atribuições de natureza pública, bem como as pessoas jurídicas da indústria farmacêutica mantêm eventual relação com o Poder Público, cabe avaliar quais os consectários do recebimento de eventuais benefícios por aquele profissional.

Sob um viés inicial, convém discernir o alcance da Lei n. 12.813/2013 e de seu decreto regulamentador. Embora ambos os diplomas tragam regramentos acerca do recebimento de presentes e hospitalidades por ocupantes de cargos e empregos no Poder Executivo federal, o art. 2° da Lei n. 12.813/2013[19] retira a incidência destas normas à hipótese ora analisada (profissionais médicos que exerçam atividade pública).

Afastada a aplicação destas normas ao objeto do presente ensaio, impende examinar qual seria o tratamento normativo efetivamente adequado para esta conduta, nos casos em que o sujeito é profissional médico e desempenha múnus público, dada a inexistência de lei própria sobre o tema (Sunshine Act). Mais especificamente, averiguar se as leis que compõem o microssistema de combate à corrupção administrativa[20] estabeleceriam a moldura normativa mais apropriada para esta circunstância.

É consabido que a Lei n. 8.429/1992 (“Lei de Improbidade Administrativa”) dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude de prática de atos de improbidade administrativa. Todavia, a subsunção da conduta do profissional médico público que recebe benefícios de agente privado, bem como da conduta das pessoas jurídicas de direito privado (indústrias farmacêuticas) que mantêm relações profissionais com eles, à Lei n. 8.429/1992 não se afigura automática.

Sob um primeiro aspecto, importa a análise dos sujeitos arrolados pela lei para fins de tipificação dos atos de improbidade administrativa. De acordo com o art. 2° da Lei de Improbidade Administrativa “consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei”. Na sequência, o parágrafo único do art. 2º revela que se sujeita às sanções previstas na lei “o particular, pessoa física ou jurídica, que celebra com a administração pública convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente”, bem como àquele “que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade”,

A partir da dicção destes dispositivos, é possível cogitar a eventual prática de ato de improbidade administrativa pelo profissional médico que receba vantagens e benefícios de agente privado, concorrendo este para a conduta supostamente ilícita e, portanto, se sujeitando às mesmas penalidades. Entretanto, para a efetiva tipificação desta prática é essencial adentrar no elemento subjetivo que o permeia, o que reclama exame analítico dos fatores que circundam esta conduta.

Com efeito o § 3° do art. 1° da Lei de Improbidade Administrativa estipula que “mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”. Trata-se de inovação carreada pela Lei 14.230/2021 e que explicitou a conjugação de dois fatores para a responsabilização por ato de improbidade: (i) a comprovação de ato doloso; e (ii) a finalidade ilícita da conduta.

Afora o embaraço inerente à comprovação da intenção dolosa de um profissional médico, ao prescrever determinado produto, atrelando-se ao eventual benefício ou vantagem por ele recebido, a própria acepção aberta dos atos passíveis de tipificação torna ainda mais árdua esta análise.

De fato, a tipologia de determinando ato como configurador de improbidade administrativa encerra múltiplas feições, justamente por compreender conceitos jurídicos indeterminados, consoante o escólio de Emerson Garcia[21]:

“Os atos de improbidade administrativa encontram-se descritos nas três seções que compõem o Capítulo II da Lei n. 8.429/1992; estando aglutinados em três grupos distintos, conforme o ato importe em enriquecimento ilícito (art. 9°), cause prejuízo ao erário (art. 10) ou tão somente atente contra os princípios da administração pública (art. 11).

(…) Da leitura dos referidos dispositivos legais, depreende-se a coexistência de duas técnicas legislativas: de acordo com a primeira, vislumbrada no caput dos dispositivos tipificadores de improbidade, tem-se a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, apresentando-se como instrumento adequado ao enquadramento do infindável número de ilícitos passíveis de serem praticados, os quais são frutos inevitáveis da criatividade e do poder de improvisação humanos; a segunda, por sua vez, foi utilizada na formação de diversos incisos que compõem os arts. 9°, 10 e 11, tratando-se de previsões, específicas ou passíveis de integração, das situações que comumente consubstanciam a improbidade, as quais, além de facilitar a compreensão dos conceitos indeterminados veiculados no caput, têm natureza meramente exemplificativa, o que deflui do próprio emprego do advérbio ‘notadamente’”.

Quer parecer que a valoração destes elementos na situação objeto deste ensaio reúne obstáculos ainda maiores. Isso em virtude da assimetria de informações necessárias à concatenação entre a outorga de determinado benefício e o efetivo incremento do número de prescrições de um produto para a saúde[22]. Nesse sentido, registre-se as ponderações de Emerson Garcia sobre os esforços que entremeiam este exercício de valoração:[23]

“A utilização dos conceitos jurídicos indeterminados exigirá do intérprete a realização de uma operação de valoração das circunstâncias periféricas ao caso, o que permitirá a densificação do seu conteúdo e a correlata concretização da norma. Diversamente de uma operação de mera subsunção, em que a norma traz em si todas as notas características imprescindíveis à sua aplicação, aqui será imprescindível a intermediação entre a disposição normativa e o fato, de uma operação de índole valorativa.

Essa operação, por sua própria natureza, exigirá uma atitude responsável por parte do intérprete, o que permitirá a consecução de resultados dotados de plena aceitabilidade. Tal será possível com a identificação dos elementos característicos das figuras típicas, daqueles que são imprescindíveis à incidência da tipologia legal, bem como se grau e a intensidade em que se apresentam no caso concreto correspondem ao padrão de conduta que se busca repelir com as normas proibitivas implícitas nos arts. 9°, 10 e 11 da Lei de Improbidade. A integração da conduta à tipologia legal pressupõe não só a presença dos elementos característicos, como também que os possíveis traços distintivos sejam inaptos a subjugá-los, exigindo uma ampla identificação dos valores aceitos no campo jurídico e social”.

Adicionalmente, é possível destacar três feixes de condutas reprimidas pela Lei de Improbidade Administrativa (i) as que importam enriquecimento ilícito (art. 9°); (ii) as que ocasionam prejuízo ao Erário; e (iii) aquelas que atentam contra os princípios da Administração Pública.

Partindo-se de um cenário hipotético em que um profissional médico seja agraciado ou lhe é prometida benesse por uma indústria da saúde, este benefício poderia, em tese, consubstanciar, quaisquer das três condutas censuradas pela Lei de Improbidade Administrativa, desde que, evidentemente, estejam preenchidos os demais requisitos impostos pela lei (comprovação de ato doloso e a finalidade ilícita da conduta).

Em relação ao primeiro conjunto de condutas, o ato poderia incidir na hipótese do art. 9°, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa[24]. O mesmo ato teria o potencial de incorrer na previsão do art. 10, inciso II[25], acaso viesse a balizar, por exemplo, a elaboração de Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) de um dado hospital público, privilegiando a aquisição de um medicamento específico em detrimento de outros. A conduta poderia, ainda, recair na disposição do art. 11, inciso V, na eventualidade de ensejar a dispensa de licitação para a aquisição de medicamento específico produzido pela indústria que beneficiou o profissional da saúde ou a sua própria instituição.

Nesta perspectiva, uma padronização concertada, pela gestão de determinado hospital público, em contrapartida a benefícios eventualmente conferidos por uma indústria específica, poderia até mesmo atrair a aplicação da Lei n.º 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção”).Neste caso, poderia ser compreensível a aplicação do art. 5º, inciso I da Lei Anticorrupção[26], por exemplo.

Seja como for, o acesso a repositório de informações sistematizado, viabilizado, por exemplo, por legislações similares ao PPSA, integra o núcleo essencial para que esta avaliação possa ser realizada de maneira acurada e minimamente fidedigna. Trata-se de ferramental indispensável para este mister, sobretudo em um contexto em que esta avaliação ostenta natureza imanentemente subjetiva.

 

  1. Conclusão

Viu-se, portanto, que a interação existente entre profissionais médicos e a indústria de medicamentos e produtos para saúde longe de ser uma situação ensejadora de dúvidas da lisura da atuação médica e de potencial conflito de interesses, representa uma etapa importante para o desenvolvimento de novas tecnologias, na medida em que auxilia pesquisas de soluções experimentais e sua viabilidade para uma futura comercialização.

Entretanto, tal interação exige a observâncias de certas premissas, de modo a evitar a vulgarização da prática, bem como o descrédito dos profissionais médicos, quando da prescrição dos medicamentos.

Assim, entende-se como salutares medidas e legislações específicas, tal como o Physician Payments Sunshine Act (Section 6002 da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010), criada nos Estados Unidos e, mais especificamente no Brasil, a Lei Estadual n. 22440/2016, promulgada pelo Estado de Minas Gerais, a qual convencionou-se denominar “Sunshine Act Mineiro”, e que inspirou projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados[27].

Diz-se salutar, pois a regulação e definição de premissas é importante não só para tornar transparente e privilegiar a ética, na relação médico-paciente, como também na atuação dos profissionais em relação à gerência, administração e condução de estabelecimentos hospitalares, especialmente os públicos, cuja função está subsumida às normas inerentes da atividade de gestão pública, em especial a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei Anticorrupção.

Espera-se, dessa forma, que haja um movimento de difusão destes preceitos normativos para outros estados da federação, além de Minas Gerais, ou até mesmo a promulgação de lei federal acerca da matéria, compreendendo-se se tratar de tema importante e de alta relevância ao interesse público.

 

  1. Referências Bibliográficas

GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

GORLACH, I., e PHAM-KANTER, G. Brightening Up: The Effect of the Physician Payment Sunshine Act on Existing Regulation of Pharmaceutical Marketing in Journal of Law, Medicine & Ethics, (2013). Disponível em https://www.med.upenn.edu/kanterresearch/assets/user-content/documents/gorlach%20phamkanter%20brightening%20JLME%202013.pdf. Acesso em 15.10.2022

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais

LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019

MASSUD FILHO, João. Medicina farmacêutica: conceitos e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2016.

ROSENTHAL, Meredith B., e MELLO, Michelle M. Sunlight as Disinfectant — New Rules on Disclosure of Industry Payments to Physicians. In New England Journal of Medicine 368 (2013). Disponível em: doi:10.1056/nejmp1305090. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[1] “O principal objetivo do médico é promover a saúde e tratar a doença. Desde tempos remotos, há uma procura por substâncias que poderiam interferir positivamente na enfermidade de um paciente. Em contrapartida, não havia até aquele momento recursos tecnológicos e arsenal terapêutico conhecidos que fizessem frente a todas as patologias. (…) Com a evolução do conhecimento, o médico teve à disposição muitos recursos tecnológicos e um acervo terapêutico bastante eficaz. Se por um lado, havia poucos recursos, por outro, havia uma grande interação entre a figura poderosa do médico e seus pacientes. Assim, era estabelecida  uma relação entre o médico e o paciente muito importante para o tratamento e a eventual cura de certas doenças. Atualmente, sobram tecnologia e tecnologia e terapêutica e falta relação médico-paciente mais voltada para o ser humano e suas angústias. (…) Quase todos os médicos usam medicamentos em sua prática diária, a respeito dos quais tomam conhecimento, rotineiramente, por meio dos representantes da indústria farmacêutica”. MASSUD FILHO, João. Medicina farmacêutica: conceitos e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2016, p. 323.

[2] A Justificação do Projeto de Lei n.º 7.990/2017 evidencia a dualidade dos benefícios eventualmente granjeados “Diversos tipos de interações que envolvam benefícios financeiros ou monetariamente apuráveis pela análise dos custos envolvidos podem ser estabelecidos entre a indústria da saúde e os profissionais que indicam seus produtos. Obviamente que algumas dessas interações podem estar vinculadas ao desenvolvimento de inovações e melhoria dos produtos e às inovações científicas. Mas existem outras interações que podem ser veladamente direcionadas para influenciar preferências e gerar, assim, interesses conflitantes entre as partes que prescrevem e fornecem o material indicado e o paciente”.

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1574876&filename=PL+7990/2017, Acesso em 31 de outubro de 2022.

[3] LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 204.

[4] “Dessa forma, pode-se afirmar que o conceito de conflito de interesses não é sinônimo de julgamento sobre a honestidade da pessoa, mas expressa interferência latente que, muitas vezes, é difícil ou impossível de detectar como influência nefasta”, LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 206.

[5] A propósito, vale conferir estudo elaborado sobre este tema (GRENNAN et al, 2018). https://faculty.wharton.upenn.edu/wp-content/uploads/2018.

[6] “Nos termos do Sunshine Act, fabricantes de medicamentos, de dispositivos médicos, de produtos biológicos e de suprimentos médicos cobertos por três programas de saúde federais (Medicare, Medicaid e State Children’s Health Insurance Program (SCHIP)) devem coletar, publicar e manter a rastreabilidade das relações financeiras para com médicos e hospitais de ensino, relatando-as aos Centros de Serviços Medicare e Medicaid (CMS). Importa consignar que o objetivo da lei é aumentar a transparência das relações financeiras entre prestadores de serviços de saúde e fabricantes de produtos farmacêuticos, no intuito de coibir possíveis conflitos de interesse. Portanto, a busca por mais transparência justifica-se porque, além de mitigar eventuais desvios de conduta, contribuirá para melhorar a sustentabilidade financeira do sistema de saúde, ao promover melhor a utilização dos recursos e transmitir confiança e segurança aos pacientes, na medida em que ajuda a evitar tratamentos por indicações desnecessárias e excessivas”. LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 133.

[7] LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 226.

[8] ROSENTHAL, Meredith B., e MELLO, Michelle M. Sunlight as Disinfectant — New Rules on Disclosure of Industry Payments to Physicians. In New England Journal of Medicine 368 (2013). Disponível em: doi:10.1056/nejmp1305090. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[9] GORLACH, I., e PHAM-KANTER, G. Brightening Up: The Effect of the Physician Payment Sunshine Act on Existing Regulation of Pharmaceutical Marketing in Journal of Law, Medicine & Ethics, (2013). Disponível em https://www.med.upenn.edu/kanterresearch/assets/user-content/documents/gorlach%20phamkanter%20brightening%20JLME%202013.pdf. Acesso em 15.10.2022.

[10] Na legislação do Estado de Vermont havia provisão legal similar “Payments for clinical trials have traditionally been exempt from state disclosure laws, and Vermont only recently required reporting for clinical trials, where payments for these trials must be reported four years after the trial has completed or at the time of product approval, whichever comes first. PPSA follows a similar model of allowing for delayed reporting of payments for research”.

[11] Mental Health Europe, Sunshine & Transparency Laws, Regulations and Codes Across Europe. Disponível em https://mhe-sme.org/wp-content/uploads/2017/09/Mapping-of-Sunshine-Laws-in-Europe.pdf. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[12] LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 113.

[13] “Art. 4º Os fornecedores de produtos para saúde, como laboratórios farmacêuticos e de farmoquímicos, os fornecedores e produtores de órteses, próteses e equipamentos médicos, os laboratórios de exames 3 complementares, inclusive os importadores desses produtos, ficam obrigados a dar total transparência, por meio da divulgação em seus endereços eletrônicos na Internet e em outros meios de divulgação social, de todos os benefícios, diretos ou indiretos, monetários ou em forma de bens, utilidades e facilidades, distribuídos aos profissionais da área da saúde, pessoa física ou jurídica, e às instituições de saúde e hospitais-escola.

Parágrafo único. Os dados divulgados na forma exigida neste artigo deverão ser enviados ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, anualmente, até noventa dias após o encerramento do exercício financeiro no qual o benefício foi concedido.

[14] “Art. 6º A possível existência de conflitos de interesses nas relações financeiras de que trata esta lei deverá ser objeto de investigação pelo Poder Público, segundo as competências de cada ente estabelecidas na legislação vigente.

Parágrafo único. Toda autoridade pública que tenha ciência da existência de conflito de interesses nas relações entre médicos, fornecedores de produtos de saúde e pacientes, deverá cientificar as autoridades da área de saúde, da vigilância sanitária e demais entidades competentes para a apuração e responsabilização de ações ilícitas e danosas ao indivíduo advindas da atuação médica influenciada pelo recebimento de benefícios de que trata esta lei”.

[15] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2187330. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[16] “Art.10º – O Governo Federal promoverá, independentemente de requerimento, a divulgação das informações a que se refere, no âmbito de sua competência. § 1º – Para cumprimento do disposto no caput, o Governo Federal utilizará sítios oficiais da rede mundial de computadores, além de outros meios e instrumentos de que dispuser. § 2º – Os sítios de que trata o § 1º deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: I – conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente e em linguagem de fácil compreensão; II – possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; III – possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis, por máquina; IV – divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação; V – garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso; VI – manter atualizadas as informações disponíveis para acesso; VII – indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou a entidade detentora do sítio; VIII – Possibilitar o encaminhamento de denúncia de não cumprimento ou de tentativa de ocultação de fato gerador do dever de informar previsto nesta lei; IX – adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei Federal nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008”.

[17] Disponível em https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2022/06/medicos-e-laboratorios-farmaceuticos-entenda-o-que-devera-mudar-em-breve-nessa-relacao-conflituosa.ghtml. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[18] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 871.

[19] Art. 2º Submetem-se ao regime desta Lei os ocupantes dos seguintes cargos e empregos:

I – de ministro de Estado;

II – de natureza especial ou equivalentes;

III – de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e

IV – do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, níveis 6 e 5 ou equivalentes.

Parágrafo único. Além dos agentes públicos mencionados nos incisos I a IV, sujeitam-se ao disposto nesta Lei os ocupantes de cargos ou empregos cujo exercício proporcione acesso a informação privilegiada capaz de trazer vantagem econômica ou financeira para o agente público ou para terceiro, conforme definido em regulamento.

[20] Lei n. 8.429/1992 e Lei n. 12.846/2013.

[21] GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 379.

[22] Presunção amparada na ausência de repositório de dados com dimensão federal sobre os benefícios e vantagens granjeados por profissionais da saúde.

[23] GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 380.

[24] “Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público”.

[25] Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

(…) II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

[26] Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º , que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I – prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

[27] Projeto de Lei n. 7.990/2017, Projeto de Lei n. 11.050/2018, Projeto de Lei n. 11.177/2018 e Projeto de Lei n. 204/2019.

 

 

Artigo originalmente publicado pela Brazilian Journal of Development (BJD), Vol. 9, n.1., em 02.01.2023.

Boa prosa e bons negócios

Com a nova Lei de Licitações, há um panorama promissor de maior diálogo entre a administração pública e empresas

por Luiz Felipe Graziano e Joaquim Augusto Melo de Queiroz

 

A recente evolução das relações da Administração Pública reforçou o seu vetor de estímulo ao diálogo com a iniciativa privada. A nova Lei de Licitações (Lei nº. 14.133/2021) prestigiou essa tendência ao fomentar soluções concertadas com os administrados. Dois institutos assinalam a tônica dialógica incorporada no texto da nova lei: o Procedimento de Manifestação de Interesse e o Diálogo Competitivo.

O Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) já vinha sendo juridicamente admitido desde a Lei Geral de Concessões, em 1995. No entanto, de aplicação antes restrita às Concessões e PPPs, passou a ser expressamente permitido em qualquer modalidade de contratação pública a partir de sua previsão no art. 81 da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

Há um panorama promissor de maior diálogo entre a Administração Pública e a iniciativa privada

Em linhas gerais, a sistemática adotada no PMI pressupõe a convocação da iniciativa privada para a realização de estudos e projetos de soluções inovadoras que poderão servir a uma futura licitação. A Administração Pública avaliará, então, estes estudos e projetos, podendo aceitá-los, ou não, dentro de sua esfera de discricionariedade. A realização da futura licitação dependerá da decisão da Administração, caso repute que os estudos atenderam ao que buscava e podem viabilizar a disputa. Nessa hipótese, o proponente dos estudos e projetos não estará impedido de participar do certame e, caso não seja ele próprio o vencedor, terá direito ao ressarcimento dos custos incorridos pela sua elaboração. Não desfrutará, todavia, de qualquer preferência no futuro procedimento licitatório, o que poderá dissuadi-lo a investir em estudos mais elaborados.

Nesse contexto, questionamentos pontuais eram erigidos em relação ao PMI. O racional invocado por alguns é o de que poderia haver o desestímulo do ente privado para realizar estudos mais robustos e sofisticados, impelindo-o a acionar os flaps e guardar para si informações estratégicas. Para aqueles que advogam esta tese, a tática tencionaria catapultar as chances de vitória no futuro e eventual certame, por possuir detalhes do projeto não compartilhados no PMI, especialmente em licitações cujos critérios de julgamento envolvam melhor técnica. Dúvidas também eram tecidas sobre eventuais condutas que poderiam ser praticadas pela Administração. O argumento é o de que a Administração poderia reunir informações da iniciativa privada e, valendo-se de sua prerrogativa discricionária, descartar os estudos realizados, alegando que as propostas não seriam satisfatórias. Todavia, posteriormente, a Administração poderia realizar o certame para a efetivação de obras públicas (e não para uma concessão), utilizando aqueles mesmos estudos, mas inviabilizando a participação do interessado.

A experiência nacional de PMIs demonstra que eventuais críticas pontuais contra o instituto devem ser analisadas com parcimônia. Muito embora o PMI possa ser aprimorado, diversos casos bem-sucedidos evidenciam a sua utilidade, tanto em proveito da iniciativa privada quanto da própria Administração Pública. Os PMIs de sucesso são múltiplos. Dentre eles, merecem destaque as licitações referentes às concessões de aeroportos e as PPPs de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

O êxito destas iniciativas demonstra que o procedimento pode ser prolífico se for estruturado de forma adequada, a despeito de sua taxa de mortalidade. Prova disso é a utilização de PMIs em novos segmentos, especialmente para a apresentação de estudos de eficiência energética e para modelagens de geração centralizada e distribuída de energia elétrica.

Se o cenário de proliferação de PMIs já era animador, as expectativas com o advento da nova Lei de Licitações são ainda maiores. Isso porque a nova lei tenciona prestigiar maior cooperação com a iniciativa privada, inclusive por meio de novos institutos. E o Diálogo Competitivo (DC) surge como a nova vedete da Lei nº. 14.133/2021.

O DC vem sendo festejado como instrumento complementar ao PMI, capaz de amainar algumas das restrições levantadas ao último. Argumenta-se que ele poderá trazer maior incentivo à iniciativa privada para a elaboração de estudos ainda mais detalhados, haja vista estar assegurada a realização da licitação e, portanto, o ressarcimento do particular. É certo, no entanto, que diferentes situações justificarão a adoção de um ou do outro modelo, a depender, por exemplo, do desejo da Administração pela apresentação mais célere de projetos e soluções, o que poderia militar em favor do PMI. As perspectivas são, portanto, alvissareiras com a disponibilização de mais um mecanismo no cardápio à disposição da Administração para aprimorar a sua interação com a iniciativa privada.

Nesta perspectiva, nota-se um sentimento de ebulição decorrente da possibilidade de emprego deste novo instrumento dialógico, assim como do aprimoramento do PMI. E a utilização de ambos merece ser encorajada pelo gestor público. Deve-se, por exemplo, escantear o receio de que a sua opção poderia eventualmente deflagar maior escrutínio pelos órgãos de controle. Em realidade, a devida fundamentação para justificar a sua escolha será sempre o melhor antídoto contra qualquer hesitação do agente público.

Há, em suma, um panorama promissor de maior diálogo entre a Administração Pública e a iniciativa privada no âmbito das contratações públicas. O desenho de soluções inovadoras, e construídas em entrosamento, poderá permitir maior eficiência da Administração e o estímulo ao desenvolvimento tecnológico pela iniciativa privada.

 

Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 23.01.2023.