Artigo: Relações perigosas: improbidade e corrupção na interação entre a indústria de saúde e profissionais médicos públicos

por Camillo Giamundo e Joaquim Augusto Melo de Queiroz

  1. Introdução

A interação existente entre profissionais médicos e a indústria de medicamentos e produtos para saúde é um fato inegável. Esta relação funda-se em aspectos intrínsecos e indispensáveis ao desenvolvimento de novas tecnologias. Como se sabe, para que uma molécula pesquisada possa evoluir para um medicamento experimental e, posteriormente, alcançar o status de medicamento comercialmente viável, uma longa trajetória de estudos laboratoriais e ensaios clínicos deverá ser percorrida. Os profissionais médicos são parte indissociável deste processo. Conduzem, por exemplo, as pesquisas clínicas com pacientes voluntários para a avaliação dos novos medicamentos. Também são responsáveis por importante produção de artigos científicos, muitos deles utilizados em dossiês para a concessão de registros sanitários. É natural que assim ocorra. E inclusive desejável. Isso porque este vínculo pode se traduzir em instrumento para a disseminação de conhecimento e como vetor para impulsionar o desenvolvimento de novas terapias. Esta relação não é, contudo, imaculada. Nela subjaz um ponto sensível: o apoio financeiro por vezes estabelecido e a sua influência na independência do profissional para a prescrição dos produtos.

O presente estudo objetiva analisar este elo financeiro e os mecanismos normativos desenvolvidos para reduzir seus efeitos nocivos. Mais especificamente, cuidar-se-á de avaliar este vínculo sob o prisma dos profissionais médicos envolvidos, com enfoque naqueles que desempenham atividades de viés público. Fincadas estas premissas, serão examinadas as hipóteses de caracterização de determinadas condutas como potenciais atos de improbidade administrativa ou mesmo sujeitas à legislação anticorrupção.

 

  1. A relação financeira

A premissa lógica inerente à prescrição de medicamentos e produtos para a saúde repousa na relação de confiança existente entre profissional médico e paciente.

Ao optar por determinado médico, o paciente confia (i) na capacidade técnica e na experiência do profissional escolhido; e (ii) na independência de seu médico para a prescrição do tratamento mais adequado ao seu quadro clínico[1].

Por força desta situação particular da prescrição de medicamentos e de produtos para saúde, consubstanciada na atribuição exclusiva deste mister a profissionais médicos, há a possibilidade de que elementos externos possam eventualmente influenciar a decisão do profissional. E nesse contexto se insere a relação financeira existente entre a indústria de saúde e os profissionais médicos.

A implementação pela indústria de saúde de práticas de cunho financeiro junto a profissionais médicos é um fato inegável. Os recursos utilizados para tanto são múltiplos e com abordagens heterogêneas. Todavia, esta circunstância não configura, por si só e automaticamente, hipótese de conflito de interesse[2].

Conquanto não se ignore a possibilidade de que aspectos financeiros advindos desta relação possam eventualmente influir na prática do profissional, a constatação desse corolário não é algo trivial e que possa ser imediatamente presumido. E os motivos são variados.

De saída, há de se ter presente que os benefícios concedidos pela indústria abarcam ações dos mais variados matizes. Dentre as mais corriqueiras, pode-se assinalar (i) a concessão de prêmios e bonificações; (ii) o custeio de viagens, passagens, hospedagem e alimentação; (iii) o pagamento de despesas para participação em congresso e congêneres; (iv) a concessão de brindes, presentes e outros bens; (v) o pagamento de honorários por consultorias, apresentação de trabalhos científicos, palestras e similares; e (vi) a contratação para atuação em estudos e pesquisas científicas em qualquer fase ou estágio.

Debruçando-se sobre as práticas elencadas, é forçoso convir que parte delas corresponde a atividades usualmente atreladas ao desenvolvimento de novos medicamentos e à produção científica. Pressupor que interações desta natureza necessariamente sugestionariam a autonomia do profissional médico acabaria por estorvar a condução de pesquisas científicas, muitas vezes dependentes de apoio privado para o seu financiamento.

Em relação às práticas que não necessariamente digam respeito à produção científica e à disseminação de conhecimento, alguns autores sustentam que tais medidas poderiam influir veladamente sobre a atividade de prescrição:

“Podemos então conceituar conflito de interesses como um conjunto de condições e circunstâncias que podem influenciar indevidamente o julgamento profissional em relação ao interesse primário (bem-estar e tratamento do paciente, validade da pesquisa) por um interesse secundário (benefício econômico, entusiasmo de notoriedade, prestígio, reconhecimento e promoção profissional), especialmente se considerarmos que brindes ofertados de laboratório aos médicos, embora não necessariamente conduzam a uma situação de conflito de interesses, podem limitar a neutralidade necessária no momento da tomada de decisões clínicas”.[3]

É verdade que este laço pode gerar efeitos inconscientes no profissional prescritor. Todavia, a aferição da correlação entre a concessão de benefícios pela indústria e o seu impacto sobre a prescrição de medicamentos não é tarefa simples, tampouco cartesiana[4]. Aquilatar a exata medida em que determinada benesse possa ter orientado objetivamente a mudança na atividade de prescrição de determinado profissional médico exige exame analítico escorado em extenso repositório de dados. E isso pode não ser suficiente. O exercício de traduzir psique para números pode carregar em si alto grau de subjetividade, caso não sejam utilizadas metodologias coerentes.

Justamente em razão destas idiossincrasias, uma avaliação desta natureza exige o emprego de parâmetros estatísticos sofisticados e procedimentos robustos de data analytics[5]. Este cenário fez sobressair expedientes idealizados para conferir maior transparência ao vínculo financeiro entre a indústria de saúde e profissionais médicos. É dizer: por meio de dados sistematizados há maior chance de uma conclusão fundamentada sobre a existência, ou não de interferência na prática de prescrição, ainda que esta avaliação não esteja absolutamente imune a possíveis distorções.

 

  1. Regulação da relação médico/indústria farmacêutica

A correlação entre a transferência de valores da indústria de saúde para profissionais médicos e o seu eventual impacto na atividade de prescrição de produtos, impulsionou o surgimento de leis e regulamentos para disciplinar tal prática.

Diversos países possuem legislação específica atinente à divulgação da transferência de valores sob as premissas aqui discutidas. O Physician Payments Sunshine Act (Section 6002 da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010), lei norte-americana sobre o tema, tornou-se referência mundial de regramento sobre a matéria. A ponto de inspirar e ser emulado em iniciativas legislativas de diversos outros países.

Trata-se de norma com objetivo bifronte: de um lado, conferir maior transparência aos gastos incorridos pela indústria e aos pagamentos auferidos por profissionais médicos. De outro, restringir o recebimento destes benefícios pelos profissionais de saúde com o fito de promover maior racionalidade econômica ao sistema de saúde. A ratio essendi é a de que haveria uma relação de causa-efeito entre os benefícios concedidos aos médicos e o incremento do número de prescrições de determinados medicamentos, em detrimento de outros. Tal circunstância implicaria a majoração de preços dos produtos prescritos, como fruto desta demanda induzida pela relação financeira entre a indústria e o profissional médico.

Para controlar esse cenário, o Physician Payments Sunshine Act (“PPSA”) estabeleceu, em linhas gerais, a obrigação anual de envio, pelos fabricantes, de informações sobre os pagamentos e as transferência de valores para médicos e para o equivalente a hospitais universitários brasileiros, ou hospitais-escola (teaching hospitals). Tais informações englobam, em síntese (i) o nome do beneficiário; (ii) o endereço profissional do beneficiário e o número de identificação do profissional médico; (iii) o montante do pagamento ou do valor transferido; (iv) as datas de efetivação do pagamento ou do valor transferido; (v) a descrição da forma de pagamento ou da transferência de valor (dinheiro, itens ou serviços em espécie, ações, opções de ações, outros tipos de remuneração de investimentos etc.); (vi) a descrição da natureza do pagamento ou da transferência de valor (honorários consultivos, remuneração por outros serviços que não sejam consultivos, brindes, refeições, custeio educacional, viagens etc.); e (vii) informações específicas sobre pagamentos e transferência de valores relacionados a medicamentos, dispositivos médicos e tratamentos médicos disponibilizados pelo Estado.

A intenção do PPSA é franquear maior transparência na interação financeira entre a indústria e os profissionais médicos, de forma a permitir ao paciente a averiguação quanto à efetiva independência do profissional no ato de prescrição[6].

Conforme esclarece Alex Pereira Leutério, em monografia que aborda esta temática, o PPSA não tenciona interferir diretamente na autonomia dos profissionais médicos para o ato de prescrição de medicamentos:

“Nesse passo, indicamos que a regulação internacional atinente aos conflitos de interesse, especialmente o Sunshine Act, obriga e orienta, significativamente, a elevação do nível de integridade em rotina operacional das indústrias farmacêuticas, por meio de parâmetros de programas de compliance e por códigos de boas práticas médicas, mediante a obrigatória e máxima transparência nos aspectos financeiros da relação médico e indústria farmacêutica, não interferindo, contudo, na autonomia dos profissionais de saúde na oportunidade de prescrição de medicamentos”.[7]

Alguns autores defendem a tese de que a divulgação das informações acerca de pagamentos e transferências de valores poderia, eventualmente, modificar o comportamento dos médicos. O intento seria evitar relações financeiras com a indústria e, assim, se precaver da possível desconfiança dos pacientes, além de reprovações de seus pares ou mesmo de se tornar alvo de exposição jornalística ou de investigação governamental[8].

É certo que, após a publicação do PPSA, os efeitos da nova regulamentação passaram a ser objeto de amplos estudos dedicados a esta problemática[9]. Em alguns destes estudos são apontados efeitos da nova lei em relação às regulamentações até então existentes nos estados norte-americanos. O primeiro deles, a migração de pagamentos e da transferência de valores para outros profissionais médicos habilitados a prescrever, mas não abarcados pelo PPSA (a saber, assistentes médicos e profissionais de enfermaria). O segundo, a possibilidade de que a ampliação da publicidade dos pagamentos e das transferências de valor prejudicasse as relações financeiras legítimas e indispensáveis para a pesquisa de inovação e para o desenvolvimento de novas tecnologias. O terceiro, uma novidade do PPSA em relação às normas estaduais norte-americanas, relativamente à necessidade de divulgação de pagamentos concernentes a estudos, incluindo pesquisas clínicas. Até então, a divulgação de pagamentos desta natureza não era obrigatória na maioria dos estados norte-americanos[10]. O PPSA, por sua vez, estabeleceu uma sistemática de divulgação diferida destes pagamentos, a ser realizada após quatro anos da conclusão do estudo clínico.

Seja como fora, talvez o efeito mais visível do PPSA seja a proliferação de leis nele inspiradas em outros países. A nova legislação ecoou em países de perfis heterogêneos, como (i) França (2011); (ii) Portugal (2013) Dinamarca (2014), Grécia (2014), Bélgica (2016), Canadá (2017), Colômbia (2018) e Itália (2022), dentre outros.

A despeito da profusão de países com legislação nacional específica acerca desta matéria, em parcela expressiva dos países que compõem a União Europeia ainda vigora a sistemática de autorregulação, com fundamento no European Disclosure Code. Trata-se de regramento elaborado pelas indústrias associadas à Federação Europeia de Indústrias e Associações Farmacêuticas (European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations – EFPIA)[11].

 

  1. Sunshine Act do Estado de Minas Gerais (Lei Estadual n. 22.440/2016)

No Brasil, a influência do PPSA foi manifestada pela promulgação da Lei Estadual n. 22440/2016, pelo Estado de Minas Gerais, a qual convencionou-se denominar “Sunshine Act Mineiro”. Trata-se da primeira lei no país a regrar esta matéria.

Referida norma foi declaradamente estruturada a partir a legislação norte-americana, sendo regulamentada pelo Decreto Estadual n. 47.334/2017. Em linhas gerais objetivou:

“(…) tornar as relações na indústria farmacêutica mais transparentes, no sentido de que as empresas atuantes nos processos de produção, fabricação, beneficiamento, distribuição e até comercialização de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos e implantes, deverão comunicar a Secretaria de Estado de Saúde – SES de Minas Gerais, qualquer tipo de benefício ou doação, tais como brindes, passagens, inscrições em eventos, hospedagens, financiamento de etapas de pesquisa, consultoria e palestras, oferecidos para profissionais de saúde com registro em conselho de classe, bem como para seus familiares, acompanhantes e pessoas convidadas, inclusive, com um sistema com acesso público de busca individualizado por médico, permitindo que a sociedade verifique os benefícios recebidos por cada profissional da área da saúde e, com isso, minimize possíveis situações de conflito de interesses no setor da saúde”[12].

Esta precursora lei estadual trouxe disposições voltadas a imprimir transparência ainda maior se comparada ao PPSA. Com efeito, o Sunshine Act Mineiro estabelece o dever de divulgação de informações sem restringir o seu alcance às empresas prestadoras de serviços ou fornecedoras de produtos ao Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse ponto, difere do PPSA na medida em que a legislação norte-americana atribui este dever apenas às empresas fornecedoras de produtos e prestadoras serviços ao sistema público norte-americano. Também diverge do PPSA ao abarcar categorias mais amplas de profissionais da saúde, como enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas etc., e não apenas profissionais médicos.

O Estado de Minas Gerais ainda foi além. Promulgou a Lei Estadual n. 22.921/2018, ditando regras sobre a obrigatoriedade de as empresas de produtos para a saúde e de interesse da saúde informarem ao órgão estadual competente sobre patrocínio destinado à realização de evento científico.

Contudo, malgrado o pioneirismo, as leis estaduais mineiras não se traduziram em movimento de difusão destes preceitos normativos para outros estados da federação. Tampouco houve a promulgação de lei federal acerca desta matéria, inobstante existam projetos de lei em discussão no parlamento.

 

  1. Proposições normativas em tramitação

Conquanto ainda se aguarde um marco regulatório sobre o tema, diversas proposições legislativas federais afloraram após a promulgação do Sunshine Act Mineiro.

Quatro principais projetos de lei tramitam atualmente na Câmara dos Deputados. O primeiro deles, Projeto de Lei n. 7.990/2017, dispõe sobre a transparência e a publicidade de relações financeiras estabelecidas entre a indústria da área de saúde e os médicos. Referido projeto de lei impõe a obrigação de divulgação, pelos fornecedores de produtos para saúde, em seus sítios eletrônicos e em outros meios de divulgação social, de todos os benefícios concedidos aos profissionais da área da saúde[13]. Preceitua ainda a obrigação de publicação destas informações, pelas entidades da União responsáveis pela proteção da saúde e a vigilância sanitária, em seus sítios eletrônicos. E, por fim, assenta a possibilidade investigação de possíveis conflitos de interesse nas relações entre médicos e fornecedores de produtos para saúde[14].

O segundo projeto de lei (PL 11.050/2018)[15] traz previsões praticamente idênticas ao PL 7.990/2017, ao qual está apensado. Já o Projeto de Lei n. 11.177/2018, amplia o espectro de regulação sobre a matéria ao também instituir diretrizes para a divulgação de custos incorridos para o patrocínio de eventos científicos (possivelmente inspirado na Lei Estadual de Minas Gerais n. 22.921/2018). E tece maiores detalhes acerca do sistema de informação[16] e das sanções passíveis de cominação. Por fim, o Projeto de Lei n. 204/2019, também apensado ao PL 7.990/2017, não introduz modificações significativas em relação às demais proposições legislativas, replicando, em suma, os dispositivos dos outros projetos.

Rumores acerca da edição de uma Medida Provisória para o tratamento desta matéria circularam em meados de 2022[17]. Contudo, até o presente momento, não houve apresentação formal de texto legal.

 

  1. Sujeitos das condutas

Uma vez estabelecidos os contornos atinentes às práticas de concessão de benefícios a profissionais de saúde, cumpre verificar a hipótese específica de dispensa destas benesses em favor de profissional que desempenhe atividade de natureza pública, além das consequências desta conduta.

O exercício envolve preliminarmente a avaliação do enquadramento do profissional como agente público, premissa essencial para as etapas subsequentes. Conquanto esta caracterização possa denotar aparente simplicidade, ela embute condicionantes que podem carrear maior complexidade.

Inicialmente, cumpre averiguar se o agente estatal possui vínculo de direito privado ou de direito público com a entidade à qual possui filiação. Caso o vínculo seja de direito privado, incumbe investigar então a existência, ou não, de liame trabalhista.

Paralelamente, o agente estatal detentor de vínculo de direito público, de natureza não política, e civil (não militar, portanto) poderá desempenhar atividades como servidor ou não servidor. Na hipótese de não ser servidor, o exercício de seu mister comporta variados regimes legais, espelhados nas leis ns. 8.666/1993, 8.987/1995, 9.637/1998, 9.790/1999 e 11.079/2004. Caso seja servidor, o agente público será estatutário ou temporário[18].

Sob o aspecto de direito privado, há que se falar, ainda, da figura das pessoas jurídicas da indústria farmacêutica e, eventualmente, seus representantes legais, que também devem observar as regras e premissas legais na relação com o agente público ou o estabelecimento médico/farmacêutico de natureza pública, especificamente quanto à promessa ou concessão de benefícios e vantagens.

 

  1. Subsunção das condutas às tipologias legais

Uma vez definido que o médico efetivamente pratica atribuições de natureza pública, bem como as pessoas jurídicas da indústria farmacêutica mantêm eventual relação com o Poder Público, cabe avaliar quais os consectários do recebimento de eventuais benefícios por aquele profissional.

Sob um viés inicial, convém discernir o alcance da Lei n. 12.813/2013 e de seu decreto regulamentador. Embora ambos os diplomas tragam regramentos acerca do recebimento de presentes e hospitalidades por ocupantes de cargos e empregos no Poder Executivo federal, o art. 2° da Lei n. 12.813/2013[19] retira a incidência destas normas à hipótese ora analisada (profissionais médicos que exerçam atividade pública).

Afastada a aplicação destas normas ao objeto do presente ensaio, impende examinar qual seria o tratamento normativo efetivamente adequado para esta conduta, nos casos em que o sujeito é profissional médico e desempenha múnus público, dada a inexistência de lei própria sobre o tema (Sunshine Act). Mais especificamente, averiguar se as leis que compõem o microssistema de combate à corrupção administrativa[20] estabeleceriam a moldura normativa mais apropriada para esta circunstância.

É consabido que a Lei n. 8.429/1992 (“Lei de Improbidade Administrativa”) dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude de prática de atos de improbidade administrativa. Todavia, a subsunção da conduta do profissional médico público que recebe benefícios de agente privado, bem como da conduta das pessoas jurídicas de direito privado (indústrias farmacêuticas) que mantêm relações profissionais com eles, à Lei n. 8.429/1992 não se afigura automática.

Sob um primeiro aspecto, importa a análise dos sujeitos arrolados pela lei para fins de tipificação dos atos de improbidade administrativa. De acordo com o art. 2° da Lei de Improbidade Administrativa “consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei”. Na sequência, o parágrafo único do art. 2º revela que se sujeita às sanções previstas na lei “o particular, pessoa física ou jurídica, que celebra com a administração pública convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente”, bem como àquele “que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade”,

A partir da dicção destes dispositivos, é possível cogitar a eventual prática de ato de improbidade administrativa pelo profissional médico que receba vantagens e benefícios de agente privado, concorrendo este para a conduta supostamente ilícita e, portanto, se sujeitando às mesmas penalidades. Entretanto, para a efetiva tipificação desta prática é essencial adentrar no elemento subjetivo que o permeia, o que reclama exame analítico dos fatores que circundam esta conduta.

Com efeito o § 3° do art. 1° da Lei de Improbidade Administrativa estipula que “mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”. Trata-se de inovação carreada pela Lei 14.230/2021 e que explicitou a conjugação de dois fatores para a responsabilização por ato de improbidade: (i) a comprovação de ato doloso; e (ii) a finalidade ilícita da conduta.

Afora o embaraço inerente à comprovação da intenção dolosa de um profissional médico, ao prescrever determinado produto, atrelando-se ao eventual benefício ou vantagem por ele recebido, a própria acepção aberta dos atos passíveis de tipificação torna ainda mais árdua esta análise.

De fato, a tipologia de determinando ato como configurador de improbidade administrativa encerra múltiplas feições, justamente por compreender conceitos jurídicos indeterminados, consoante o escólio de Emerson Garcia[21]:

“Os atos de improbidade administrativa encontram-se descritos nas três seções que compõem o Capítulo II da Lei n. 8.429/1992; estando aglutinados em três grupos distintos, conforme o ato importe em enriquecimento ilícito (art. 9°), cause prejuízo ao erário (art. 10) ou tão somente atente contra os princípios da administração pública (art. 11).

(…) Da leitura dos referidos dispositivos legais, depreende-se a coexistência de duas técnicas legislativas: de acordo com a primeira, vislumbrada no caput dos dispositivos tipificadores de improbidade, tem-se a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, apresentando-se como instrumento adequado ao enquadramento do infindável número de ilícitos passíveis de serem praticados, os quais são frutos inevitáveis da criatividade e do poder de improvisação humanos; a segunda, por sua vez, foi utilizada na formação de diversos incisos que compõem os arts. 9°, 10 e 11, tratando-se de previsões, específicas ou passíveis de integração, das situações que comumente consubstanciam a improbidade, as quais, além de facilitar a compreensão dos conceitos indeterminados veiculados no caput, têm natureza meramente exemplificativa, o que deflui do próprio emprego do advérbio ‘notadamente’”.

Quer parecer que a valoração destes elementos na situação objeto deste ensaio reúne obstáculos ainda maiores. Isso em virtude da assimetria de informações necessárias à concatenação entre a outorga de determinado benefício e o efetivo incremento do número de prescrições de um produto para a saúde[22]. Nesse sentido, registre-se as ponderações de Emerson Garcia sobre os esforços que entremeiam este exercício de valoração:[23]

“A utilização dos conceitos jurídicos indeterminados exigirá do intérprete a realização de uma operação de valoração das circunstâncias periféricas ao caso, o que permitirá a densificação do seu conteúdo e a correlata concretização da norma. Diversamente de uma operação de mera subsunção, em que a norma traz em si todas as notas características imprescindíveis à sua aplicação, aqui será imprescindível a intermediação entre a disposição normativa e o fato, de uma operação de índole valorativa.

Essa operação, por sua própria natureza, exigirá uma atitude responsável por parte do intérprete, o que permitirá a consecução de resultados dotados de plena aceitabilidade. Tal será possível com a identificação dos elementos característicos das figuras típicas, daqueles que são imprescindíveis à incidência da tipologia legal, bem como se grau e a intensidade em que se apresentam no caso concreto correspondem ao padrão de conduta que se busca repelir com as normas proibitivas implícitas nos arts. 9°, 10 e 11 da Lei de Improbidade. A integração da conduta à tipologia legal pressupõe não só a presença dos elementos característicos, como também que os possíveis traços distintivos sejam inaptos a subjugá-los, exigindo uma ampla identificação dos valores aceitos no campo jurídico e social”.

Adicionalmente, é possível destacar três feixes de condutas reprimidas pela Lei de Improbidade Administrativa (i) as que importam enriquecimento ilícito (art. 9°); (ii) as que ocasionam prejuízo ao Erário; e (iii) aquelas que atentam contra os princípios da Administração Pública.

Partindo-se de um cenário hipotético em que um profissional médico seja agraciado ou lhe é prometida benesse por uma indústria da saúde, este benefício poderia, em tese, consubstanciar, quaisquer das três condutas censuradas pela Lei de Improbidade Administrativa, desde que, evidentemente, estejam preenchidos os demais requisitos impostos pela lei (comprovação de ato doloso e a finalidade ilícita da conduta).

Em relação ao primeiro conjunto de condutas, o ato poderia incidir na hipótese do art. 9°, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa[24]. O mesmo ato teria o potencial de incorrer na previsão do art. 10, inciso II[25], acaso viesse a balizar, por exemplo, a elaboração de Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) de um dado hospital público, privilegiando a aquisição de um medicamento específico em detrimento de outros. A conduta poderia, ainda, recair na disposição do art. 11, inciso V, na eventualidade de ensejar a dispensa de licitação para a aquisição de medicamento específico produzido pela indústria que beneficiou o profissional da saúde ou a sua própria instituição.

Nesta perspectiva, uma padronização concertada, pela gestão de determinado hospital público, em contrapartida a benefícios eventualmente conferidos por uma indústria específica, poderia até mesmo atrair a aplicação da Lei n.º 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção”).Neste caso, poderia ser compreensível a aplicação do art. 5º, inciso I da Lei Anticorrupção[26], por exemplo.

Seja como for, o acesso a repositório de informações sistematizado, viabilizado, por exemplo, por legislações similares ao PPSA, integra o núcleo essencial para que esta avaliação possa ser realizada de maneira acurada e minimamente fidedigna. Trata-se de ferramental indispensável para este mister, sobretudo em um contexto em que esta avaliação ostenta natureza imanentemente subjetiva.

 

  1. Conclusão

Viu-se, portanto, que a interação existente entre profissionais médicos e a indústria de medicamentos e produtos para saúde longe de ser uma situação ensejadora de dúvidas da lisura da atuação médica e de potencial conflito de interesses, representa uma etapa importante para o desenvolvimento de novas tecnologias, na medida em que auxilia pesquisas de soluções experimentais e sua viabilidade para uma futura comercialização.

Entretanto, tal interação exige a observâncias de certas premissas, de modo a evitar a vulgarização da prática, bem como o descrédito dos profissionais médicos, quando da prescrição dos medicamentos.

Assim, entende-se como salutares medidas e legislações específicas, tal como o Physician Payments Sunshine Act (Section 6002 da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010), criada nos Estados Unidos e, mais especificamente no Brasil, a Lei Estadual n. 22440/2016, promulgada pelo Estado de Minas Gerais, a qual convencionou-se denominar “Sunshine Act Mineiro”, e que inspirou projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados[27].

Diz-se salutar, pois a regulação e definição de premissas é importante não só para tornar transparente e privilegiar a ética, na relação médico-paciente, como também na atuação dos profissionais em relação à gerência, administração e condução de estabelecimentos hospitalares, especialmente os públicos, cuja função está subsumida às normas inerentes da atividade de gestão pública, em especial a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei Anticorrupção.

Espera-se, dessa forma, que haja um movimento de difusão destes preceitos normativos para outros estados da federação, além de Minas Gerais, ou até mesmo a promulgação de lei federal acerca da matéria, compreendendo-se se tratar de tema importante e de alta relevância ao interesse público.

 

  1. Referências Bibliográficas

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GORLACH, I., e PHAM-KANTER, G. Brightening Up: The Effect of the Physician Payment Sunshine Act on Existing Regulation of Pharmaceutical Marketing in Journal of Law, Medicine & Ethics, (2013). Disponível em https://www.med.upenn.edu/kanterresearch/assets/user-content/documents/gorlach%20phamkanter%20brightening%20JLME%202013.pdf. Acesso em 15.10.2022

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais

LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019

MASSUD FILHO, João. Medicina farmacêutica: conceitos e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2016.

ROSENTHAL, Meredith B., e MELLO, Michelle M. Sunlight as Disinfectant — New Rules on Disclosure of Industry Payments to Physicians. In New England Journal of Medicine 368 (2013). Disponível em: doi:10.1056/nejmp1305090. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[1] “O principal objetivo do médico é promover a saúde e tratar a doença. Desde tempos remotos, há uma procura por substâncias que poderiam interferir positivamente na enfermidade de um paciente. Em contrapartida, não havia até aquele momento recursos tecnológicos e arsenal terapêutico conhecidos que fizessem frente a todas as patologias. (…) Com a evolução do conhecimento, o médico teve à disposição muitos recursos tecnológicos e um acervo terapêutico bastante eficaz. Se por um lado, havia poucos recursos, por outro, havia uma grande interação entre a figura poderosa do médico e seus pacientes. Assim, era estabelecida  uma relação entre o médico e o paciente muito importante para o tratamento e a eventual cura de certas doenças. Atualmente, sobram tecnologia e tecnologia e terapêutica e falta relação médico-paciente mais voltada para o ser humano e suas angústias. (…) Quase todos os médicos usam medicamentos em sua prática diária, a respeito dos quais tomam conhecimento, rotineiramente, por meio dos representantes da indústria farmacêutica”. MASSUD FILHO, João. Medicina farmacêutica: conceitos e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2016, p. 323.

[2] A Justificação do Projeto de Lei n.º 7.990/2017 evidencia a dualidade dos benefícios eventualmente granjeados “Diversos tipos de interações que envolvam benefícios financeiros ou monetariamente apuráveis pela análise dos custos envolvidos podem ser estabelecidos entre a indústria da saúde e os profissionais que indicam seus produtos. Obviamente que algumas dessas interações podem estar vinculadas ao desenvolvimento de inovações e melhoria dos produtos e às inovações científicas. Mas existem outras interações que podem ser veladamente direcionadas para influenciar preferências e gerar, assim, interesses conflitantes entre as partes que prescrevem e fornecem o material indicado e o paciente”.

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1574876&filename=PL+7990/2017, Acesso em 31 de outubro de 2022.

[3] LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 204.

[4] “Dessa forma, pode-se afirmar que o conceito de conflito de interesses não é sinônimo de julgamento sobre a honestidade da pessoa, mas expressa interferência latente que, muitas vezes, é difícil ou impossível de detectar como influência nefasta”, LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 206.

[5] A propósito, vale conferir estudo elaborado sobre este tema (GRENNAN et al, 2018). https://faculty.wharton.upenn.edu/wp-content/uploads/2018.

[6] “Nos termos do Sunshine Act, fabricantes de medicamentos, de dispositivos médicos, de produtos biológicos e de suprimentos médicos cobertos por três programas de saúde federais (Medicare, Medicaid e State Children’s Health Insurance Program (SCHIP)) devem coletar, publicar e manter a rastreabilidade das relações financeiras para com médicos e hospitais de ensino, relatando-as aos Centros de Serviços Medicare e Medicaid (CMS). Importa consignar que o objetivo da lei é aumentar a transparência das relações financeiras entre prestadores de serviços de saúde e fabricantes de produtos farmacêuticos, no intuito de coibir possíveis conflitos de interesse. Portanto, a busca por mais transparência justifica-se porque, além de mitigar eventuais desvios de conduta, contribuirá para melhorar a sustentabilidade financeira do sistema de saúde, ao promover melhor a utilização dos recursos e transmitir confiança e segurança aos pacientes, na medida em que ajuda a evitar tratamentos por indicações desnecessárias e excessivas”. LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 133.

[7] LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 226.

[8] ROSENTHAL, Meredith B., e MELLO, Michelle M. Sunlight as Disinfectant — New Rules on Disclosure of Industry Payments to Physicians. In New England Journal of Medicine 368 (2013). Disponível em: doi:10.1056/nejmp1305090. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[9] GORLACH, I., e PHAM-KANTER, G. Brightening Up: The Effect of the Physician Payment Sunshine Act on Existing Regulation of Pharmaceutical Marketing in Journal of Law, Medicine & Ethics, (2013). Disponível em https://www.med.upenn.edu/kanterresearch/assets/user-content/documents/gorlach%20phamkanter%20brightening%20JLME%202013.pdf. Acesso em 15.10.2022.

[10] Na legislação do Estado de Vermont havia provisão legal similar “Payments for clinical trials have traditionally been exempt from state disclosure laws, and Vermont only recently required reporting for clinical trials, where payments for these trials must be reported four years after the trial has completed or at the time of product approval, whichever comes first. PPSA follows a similar model of allowing for delayed reporting of payments for research”.

[11] Mental Health Europe, Sunshine & Transparency Laws, Regulations and Codes Across Europe. Disponível em https://mhe-sme.org/wp-content/uploads/2017/09/Mapping-of-Sunshine-Laws-in-Europe.pdf. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[12] LEUTÉRIO, Alex Pereira. Criminal compliance em indústrias farmacêuticas: mecanismos de prevenção à criminalidade corporativa e à violação de princípios bioéticos, São Paulo: 2019, p. 113.

[13] “Art. 4º Os fornecedores de produtos para saúde, como laboratórios farmacêuticos e de farmoquímicos, os fornecedores e produtores de órteses, próteses e equipamentos médicos, os laboratórios de exames 3 complementares, inclusive os importadores desses produtos, ficam obrigados a dar total transparência, por meio da divulgação em seus endereços eletrônicos na Internet e em outros meios de divulgação social, de todos os benefícios, diretos ou indiretos, monetários ou em forma de bens, utilidades e facilidades, distribuídos aos profissionais da área da saúde, pessoa física ou jurídica, e às instituições de saúde e hospitais-escola.

Parágrafo único. Os dados divulgados na forma exigida neste artigo deverão ser enviados ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, anualmente, até noventa dias após o encerramento do exercício financeiro no qual o benefício foi concedido.

[14] “Art. 6º A possível existência de conflitos de interesses nas relações financeiras de que trata esta lei deverá ser objeto de investigação pelo Poder Público, segundo as competências de cada ente estabelecidas na legislação vigente.

Parágrafo único. Toda autoridade pública que tenha ciência da existência de conflito de interesses nas relações entre médicos, fornecedores de produtos de saúde e pacientes, deverá cientificar as autoridades da área de saúde, da vigilância sanitária e demais entidades competentes para a apuração e responsabilização de ações ilícitas e danosas ao indivíduo advindas da atuação médica influenciada pelo recebimento de benefícios de que trata esta lei”.

[15] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2187330. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[16] “Art.10º – O Governo Federal promoverá, independentemente de requerimento, a divulgação das informações a que se refere, no âmbito de sua competência. § 1º – Para cumprimento do disposto no caput, o Governo Federal utilizará sítios oficiais da rede mundial de computadores, além de outros meios e instrumentos de que dispuser. § 2º – Os sítios de que trata o § 1º deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: I – conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente e em linguagem de fácil compreensão; II – possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; III – possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis, por máquina; IV – divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação; V – garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso; VI – manter atualizadas as informações disponíveis para acesso; VII – indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou a entidade detentora do sítio; VIII – Possibilitar o encaminhamento de denúncia de não cumprimento ou de tentativa de ocultação de fato gerador do dever de informar previsto nesta lei; IX – adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei Federal nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008”.

[17] Disponível em https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2022/06/medicos-e-laboratorios-farmaceuticos-entenda-o-que-devera-mudar-em-breve-nessa-relacao-conflituosa.ghtml. Acesso em 31 de outubro de 2022.

[18] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 871.

[19] Art. 2º Submetem-se ao regime desta Lei os ocupantes dos seguintes cargos e empregos:

I – de ministro de Estado;

II – de natureza especial ou equivalentes;

III – de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e

IV – do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, níveis 6 e 5 ou equivalentes.

Parágrafo único. Além dos agentes públicos mencionados nos incisos I a IV, sujeitam-se ao disposto nesta Lei os ocupantes de cargos ou empregos cujo exercício proporcione acesso a informação privilegiada capaz de trazer vantagem econômica ou financeira para o agente público ou para terceiro, conforme definido em regulamento.

[20] Lei n. 8.429/1992 e Lei n. 12.846/2013.

[21] GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 379.

[22] Presunção amparada na ausência de repositório de dados com dimensão federal sobre os benefícios e vantagens granjeados por profissionais da saúde.

[23] GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 380.

[24] “Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público”.

[25] Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

(…) II – permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;

[26] Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º , que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I – prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

[27] Projeto de Lei n. 7.990/2017, Projeto de Lei n. 11.050/2018, Projeto de Lei n. 11.177/2018 e Projeto de Lei n. 204/2019.

 

 

Artigo originalmente publicado pela Brazilian Journal of Development (BJD), Vol. 9, n.1., em 02.01.2023.

ANS e os desafios da saúde suplementar

por Joaquim Augusto Melo de Queiroz

 

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos

 

O setor de saúde suplementar está no centro da arena nacional. O reajuste nos valores dos planos de saúde ressoou com veemência na sociedade. O julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a natureza do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) também ganhou as manchetes dos jornais nas últimas semanas. O momento é de ebulição. E em diferentes frentes e cenários da saúde suplementar.

A recente entrada em vigor da Lei nº 14.307/2022 é uma das novidades que movimentou o segmento. Trata-se da lei que alterou os prazos e o procedimento para a atualização da lista das coberturas obrigatórias pelos planos de saúde. No jargão técnico, a lista é denominada Rol de Eventos e Procedimentos em Saúde, ou rol da ANS. A expressão é sofisticada, mas o seu objetivo simples: elencar os medicamentos e processos que deverão necessariamente ser cobertos pelos planos de saúde.

 

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos

O rol da ANS é a vedete do momento. Em 8 de junho foi retomado e concluído o julgamento pelo STJ sobre a natureza do rol (taxativo ou exemplificativo). O tema causou furor e mobilizou parcela razoável da sociedade civil. Prevaleceu a tese de que o rol é taxativo, comportando excepcionalidades, desde que preenchidos determinados requisitos. Emboranão tenha sido proferida em um recurso repetitivo, valendo apenas para as partes do processo, a decisão vem recebendo críticas em relação aos contornos da modulação realizada pelo STJ. A tendência é de que a controvérsia prossiga. Eventualmente até o Supremo Tribunal Federal (STF).

A despeito do frenesi, é preciso parcimônia e reflexão. Alterações significativas moldarão o formato da saúde suplementar nos próximos anos. A expectativa é a de que a regulação possa avançar, mas há a necessidade de aprofundamento das discussões em relação a temas espinhosos. O aprimoramento do processo de atualização do rol da ANS é justamente um deles.

A Lei nº 14.307/2022 desponta nesse contexto. Foi ela que modificou os prazos e a sistemática para a atualização das coberturas obrigatórias pelas operadoras de saúde. Imprimiu, em síntese, nova dinâmica de atualização contínua do rol. Paralelamente, diminuiu o tempo de análise pela agência reguladora e introduziu regras e etapas no procedimento para a atualização. Reduziu, por exemplo, o prazo para a apreciação de pedidos de incorporação de medicamentos para o tratamento de câncer (de uso oral), impondo o limite de 120 dias para a análise, prorrogável por mais 60 dias. Para outros tipos de medicamentos o prazo agora é de 180 dias, prorrogável por mais 90 dias.

O recente regramento deflagrou a escalada de pedidos para a inclusão de novas tecnologias no rol para o tratamento de diversos tipos de câncer. Existem razões de natureza terapêutica e econômica para tanto. O câncer, como se sabe, é uma doença extremamente agressiva. Dias podem ser decisivos para um desfecho favorável. Pacientes e familiares têm plena consciência dessa urgência. E o senso de premência é um dos fatores que tem impulsionado a indústria farmacêutica a submeter regulamente pedidos de incorporação desses medicamentos. Assim como o atrativo econômico inerente a esse mercado em expansão.

Terapias inovadoras para o combate ao câncer exigem investimentos maciços em pesquisa e desenvolvimento. Raras são as moléculas pesquisadas que efetivamente se tornam medicamentos. E há, logicamente, alto custo no processo de desenvolvimento desses novos medicamentos que necessita ser remunerado.

A redução dos prazos para as análises pela ANS também pode ter contribuído para o incremento do número de novos pedidos. Isso porque a previsibilidade dos prazos viabiliza melhor sistematização dos procedimentos necessários para a submissão dos pleitos. Sobretudo para a coordenação das evidências científicas que embasarão o pedido de incorporação.

Há, contudo, desafios consideráveis ao panorama atual. De um lado, a manutenção do apuro técnico nas avaliações. De outro, a pressão para o cumprimento dos novos prazos. E, ainda, a necessidade de uniformização dos parâmetros de decisão utilizados pela ANS.

Esse processo de análise fundamenta-se, em suma, em um mecanismo conhecido como a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). Trata-se, em breve resumo, de ferramenta multidisciplinar para auxiliar a tomada de decisão dos gestores em saúde.

A ATS engloba a avaliação de instrumentos de evidência científica (revisões sistemáticas e metanálises), estudos clínicos, estudos observacionais, além da apreciação de estudos econômicos. Os econômicos abordam principalmente a relação custo-efetividade da tecnologia e o impacto financeiro da sua incorporação. É justamente a apreciação o desse complexo acervo documental que suscita questionamentos a respeito das decisões da ANS.

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos. Já houve avanços, mas ainda há reservas relevantes quanto à ausência de uniformidade nas decisões. Em processos recentemente avaliados observou-se, por exemplo, interpretações dissonantes por parte da ANS a respeito de tecnologias semelhantes. Esse tipo de distorção levanta dúvidas quanto à sistemática utilizada pela agência. E pode macular a imagem do procedimento decisório, especialmente pela atuação de segmentos interessados em eventualmente barrar a inclusão de novas tecnologias.

O momento é chave. A ANS acaba de iniciar uma importante consulta pública (CP nº 99/2022) para a edição de resolução normativa que regulará aspectos essenciais da atualização do rol. É imprescindível, portanto, a participação de todos os stakeholders envolvidos no processo de incorporação nessa consulta pública. O estágio atual é de transição do modelo, sendo que a nova formatação impactará parcela significativa da população.

Artigo publicado originalmente em 25.07.2022, no jornal Valor Econômico.