Por Rodrigo de Pinho Bertoccelli

Com o novo Marco Legal do Saneamento, o setor se abriu para a participação privada, marcando uma mudança importante nas políticas públicas.

Integridade e Desenvolvimento é uma coluna do Centro de Estudos em Integridade e Desenvolvimento (CEID), do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC). Este artigo reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do CEID e INAC. Os artigos têm publicação semanal.

O conceito de cidades inteligentes e a transformação urbana têm redefinido a visão do saneamento no Brasil. A velha ideia de que “obra enterrada não dá voto”, refletindo a hesitação política em investir em saneamento, já não é mais a mesma.

Atualmente, o saneamento básico é visto como um direito essencial e um componente-chave da sustentabilidade ambiental. Além disso, áreas antes negligenciadas, como a drenagem urbana e o manejo de águas pluviais, estão recebendo a devida atenção diante dos efeitos das mudanças climáticas.

Desafios como ondas de calor, tempestades intensas, enchentes e inundações tornaram-se ainda mais comuns. As recentes catástrofes climáticas no Rio Grande do Sul são um exemplo claro dessa realidade.

No entanto, ainda precisamos compreender por que a drenagem continua sendo o elo mais fraco das concessões de saneamento e enfrentar o último desafio: tornar a prestação de serviço economicamente sustentável.

O ponto de partida da discussão é um grande truísmo

O novo Marco Legal do Saneamento, editado em 2020, fez o que a legislação anterior de 2007 não havia feito. Incluiu no rol conceitual de saneamento três frentes: a infraestrutura, as instalações e as atividades de “drenagem e manejo das águas pluviais urbanas”.

Acertadamente, o diploma tratou ainda da necessária sustentabilidade econômico-financeira desses serviços. Em outras palavras, desde 2020, permite-se que o concessionário busque remuneração com a cobrança de drenagem urbana por meio de taxas ou tarifas.

Essa constatação não é trivial. Historicamente, a arrecadação de recursos para custear a drenagem no Brasil ora inexistiu, ora esteve (e segue) associada à cobrança de IPTU – um imposto cuja arrecadação, consideradas as necessidades municipais, nem sempre retorna à origem. A cobrança específica de taxa ou tarifa sobre drenagem contorna o problema.

De maneira geral, a mensuração da água das chuvas pode ser tecnicamente mais objetiva do que a mensuração, por exemplo, de resíduos sólidos.

Essa diferença proporciona mais transparência à cobrança, tanto da tarifa (um preço público) quanto da taxa (que atende aos requisitos de disponibilidade, especificidade e divisibilidade do Código Tributário Nacional).

A viabilidade econômico-financeira efetiva da drenagem, entretanto, não escapa a dois aspectos cruciais.

O primeiro diz respeito às particularidades técnicas da macrodrenagem (constituída em larga escala pela drenagem natural de rios e córregos com o acréscimo de redes de canais, diques e piscinões) e da microdrenagem (constituída em menor escala pelas sarjetas, bocas de lobo e galerias, em conexão com a macrodrenagem).

Na macrodrenagem, a cobrança individualizada é dificultada pela escala da infraestrutura. Na microdrenagem, pode ser facilitada.

E pode ainda ter seu cálculo baseado na área impermeável de um lote e nas soluções de drenagem que seu proprietário adota com o intuito de mitigar o escoamento de água para o sistema externo de microdrenagem local.

Modelos fora do Brasil

Os modelos americano e canadense, por exemplo, partiram da última premissa. Nos EUA, empresas privadas, as utilities, realizam o serviço e estruturam a cobrança a partir de uma taxa fixa e de uma taxa vinculada à contribuição de escoamento de cada lote para o sistema de microdrenagem. Há quase 2 mil utilities distribuídas pelo país.

O Canadá adotou sistema semelhante a partir dos anos 1990, interessado na previsibilidade e estabilidade do fluxo de receitas desse modelo de taxação.

No Brasil, a legislação de 2007 já associava a cobrança por serviços de drenagem à impermeabilização do lote e à existência de dispositivos de amortecimento da água das chuvas.

Contudo, apenas 6% dos municípios brasileiros cobram por esses serviços, muitos deles através do IPTU. Apesar disso, o país enfrenta um déficit crítico em drenagem urbana, investindo cerca de R$ 4,4 bilhões por ano, enquanto a necessidade estimada para universalizar os serviços em 20 anos é de mais de R$ 7,1 bilhões anuais, segundo o PLANSAB.

Com o novo Marco Legal, a oportunidade é dupla

Fomentar a mudança de comportamento do cidadão-usuário e financiar a concessão da infraestrutura de drenagem, em qualquer de suas modalidades.

A nova legislação só não indica – e nem poderia – o melhor caminho para a modelagem contratual entre poder público e parceiro privado. Aí reside o segundo aspecto crucial da viabilidade econômico-financeira dos serviços de drenagem.

Trata-se do potencial de interdependência e interconexão dos inúmeros serviços de saneamento básico em seu horizonte de universalização. Por que prefeituras – ou mesmo estruturadores de projetos como o BNDES e CEF – ainda não apostam em projetos de concessão e PPPs de drenagem urbana construídos de maneira transversal e interconectada a concessões de fornecimento de água, de esgotamento sanitário ou de resíduos sólidos?

A interdependência é possível e desejável diante de desafios concretos. Serve de exemplo a Baía da Guanabara, cuja despoluição hoje cabe à concessionária de saneamento Águas do Rio, vencedora de leilões da Cedae em 2021.

No estuário carioca, ocorre o fenômeno da “língua negra”: uma contaminação entre águas naturais da baía, águas do sistema de drenagem urbana e dejetos da rede de esgotamento.

O resultado é visível na maré baixa, quando as águas do estuário, já manchadas pela poluição, fluem em direção ao mar.

O caso da Baía de Guanabara demonstra a importância de um planejamento de infraestrutura de saneamento alinhado ao planejamento ambiental. Uma combinação que foi ignorada no passado e, a despeito dos avanços e oportunidades verificados nas concessões de saneamento básico do Rio de Janeiro, ainda levará concessionárias e poder público à mesa, para uma articulação efetiva dos serviços de drenagem urbana, dos serviços de esgotamento sanitário e das ações de despoluição.

Vale perguntar: concessões com tamanha interconexão de serviços não caberiam eventual e idealmente a um único operador, com viabilidade econômico-financeira garantida pela via, por exemplo, de subsídios cruzados?

Parcela da outorga de concessões comuns não poderiam alimentar um fundo especial dedicado a projetos de PPP com intuito de universalização dos serviços de drenagem? São caminhos.

Em união com a prestação unificada dos serviços e em linha com o novo Marco Legal, a cobrança por meio de taxas ou tarifas específicas de drenagem pode ser um instrumento efetivo para garantir a financiabilidade das despesas na rede de drenagem.

A cobrança, por exemplo, por meio de uma adição na conta de água, pode promover a concorrência e aumentar a participação do setor privado no setor, gerando ganhos de eficiência na prestação, bem como permitindo a continuidade dos recursos para investimentos na universalização dos serviços.

Além disso, a natureza transversal da drenagem urbana aponta ainda para uma interdependência de serviços que vai além do próprio saneamento.

Arranjos de concessão e PPP podem e devem considerar a relação intrínseca, embora nem sempre óbvia, entre drenagem e regularização fundiária, preservação de ativos verdes, geração de créditos de carbono ou mesmo mobilidade urbana.

Trata-se do conceito de “cidade-esponja”, que também tem bons exemplos brasileiros. Um deles é o novo projeto de paisagismo das estações ferroviárias da CPTM com “jardim de chuva”.

Combinados à infraestrutura das edificações, os jardins têm baixo custo de implementação e o objetivo de melhorar o conforto ambiental, contribuir para a drenagem urbana, diminuir o impacto de chuvas fortes e filtrar a água antes de sua chegada aos lençóis freáticos do entorno.

O projeto foi premiado recentemente pela Associação Internacional de Transporte Público (UITP Latin America).

De volta ao novo Marco Legal do Saneamento

Saneamento básico é um direito essencial e um componente-chave da sustentabilidade ambiental | Agência Brasil

Não é nenhuma novidade que abriu uma janela de oportunidade para solucionar o problema do saneamento brasileiro de forma regionalizada através de subsídios cruzados entre municípios maiores e menores. Imperativo é saber que a solução deve incluir a drenagem urbana e manejo de águas pluviais – ignorá-los em potencial é perder a chance de quitar parte do atraso civilizatório brasileiro.

O fortalecimento da regulação, com a criação de normas de referência e diretrizes, também é crucial para o desenvolvimento do setor. Recentemente, a ANA iniciou a elaboração da norma de referência para a prestação dos serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas (DMAPU), com uma primeira versão prevista para o final de agosto deste ano, após um período de contribuições que se encerrou no início de maio.

Esses esforços são fundamentais para enfrentar os desafios da drenagem urbana e promover cidades mais resilientes e sustentáveis.

Em suma, a viabilidade dos serviços de drenagem e manejo de águas pluviais passa pela estruturação de concessões e PPPs com atenção dedicada à integração entre planejamento urbano, ambiental e de infraestrutura de saneamento.

Gestores públicos que olham para cima, principalmente na temporada de chuvas, sabem há tempo que obra enterrada dá voto. Mas “drenagem não dá dinheiro”, ainda dirá o senso comum. Até quando?

 

Publicado originalmente no SbtNews.