Matéria originalmente publicada em 14.03.2023, por Lucas Bombana, na Folha de São Paulo

O consórcio Via Appia Fundo de Investimento em Participações foi o vencedor do leilão para a conclusão das obras do trecho norte do Rodoanel, realizado na tarde desta terça-feira (14) na sede da B3, em São Paulo.

A gestora Starboard, que atua em situações consideradas estressadas, usualmente de empresas em dificuldade financeira, é a responsável pelo Via Appia.

Foi oferecido um desconto de 23,1% sobre o valor previsto para ser pago pelo governo do Estado de São Paulo, como aporte público para a conclusão das obras, que poderia chegar a R$ 1,4 bilhão.

Como o valor do pedágio não deve ser suficiente para remunerar adequadamente a concessionária, o governo se comprometeu a fazer pagamentos em prestações para compensar as despesas do consórcio vencedor.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (PL), com Marcos Bittencourt e Brendon Ramos, do Consórcio Via Appia, no leilão do Rodoanel Norte – Rubens Cavallari/Folhapress

Assim, o modelo da PPP (Parceria Público Privada) previa, como um dos critérios para escolher o vencedor, qual consórcio desse o maior desconto sobre estas prestações, previstas em R$ 51,4 milhões por ano.

Duas participantes, contudo, ofereceram propostas que previam dar 100% de desconto a esta contraprestação. Com isso, a disputa passou para uma segunda fase, entre Via Appia FIP e o consórcio Infraestrutura SP, formado pelas empresas EPR 2 e Voyager Participações.

Nesta segunda etapa, foi levado em conta o maior desconto sobre o aporte público previsto para finalizar a obra, outro pagamento a ser feito pelo governo. O Via Appia propôs abater 23,1%, e superou o Infraestrutura SP, que descontaria 5,11%.

Também concorreram no leilão o consórcio SP Flow, liderado pela XP, e a Acciona, mas que ofereceram descontos sobre a contraprestação de 60,03% e 12,90%, respectivamente, e não passaram para a segunda fase da disputa.

O certame chegou a ser suspenso pela Justiça às vésperas da data marcada, mas o governo paulista conseguiu derrubar a liminar.

Presente no leilão, o governador Tarcísio de Freitas (PL) afirmou ter a confiança de que, com o leilão, o trecho norte do rodoanel deve estar pronto dentro do prazo esperado, em junho de 2026.

As condições anunciadas preveem prazo da concessão de 31 anos, com um valor estimado em investimentos de aproximadamente R$ 3,4 bilhões, segundo o edital publicado em agosto de 2022.

Desse montante, cerca de R$ 2 bilhões devem ser destinados à conclusão das obras, com o restante usado na operação e manutenção da rodovia, que terá a supervisão da Artesp (Agência de Transportes do Estado de São Paulo).

“É um trecho que está há muito tempo abandonado, que merecia recursos e pessoas para entrar para trabalhar”, afirmou Marcus Bitencourt, sócio da Starboard, acrescentando que a se trata do primeiro investimento da gestora em rodovias.

Bitencourt disse ainda que o trecho Leste do rodoanel, que se conecta ao Norte, é operado por uma empresa em recuperação judicial (SPMar), e que há “sinergia operacional óbvia” entre esses trechos quando eles estiverem construídos.

“Queremos ter uma boa interação com essa outra companhia para poder ajudar”, afirmou Bitencourt, que não descartou a possibilidade de um investimento da Starboard na SPMar. “Tudo depende do preço.”

Obras inacabadas do trecho norte do Rodoanel, próximo à rodovia Fernão Dias, em São Paulo – Danilo Verpa – 13.mar.2023/Folhapress

Um caso considerado de sucesso estruturado pela gestora foi o da 3R Petroleum. A empresa é uma resultante de alguns investimentos da Starboard no setor, entre eles a aquisição da Ouro Preto Óleo e Gás, petroleira fundada por Rodolfo Landim, presidente do Flamengo.

A Starboard também tem entre os investimentos bem sucedidos em carteira a Gemini Energy, companhia do setor de transmissão elétrica vendida em 2022 para a Energisa por cerca de R$ 820 milhões. Já uma aposta do grupo que não trouxe o resultado esperado foi na varejista Máquina de Vendas, detentora da marca Ricardo Eletro, da qual a Starboard se tornou uma das principais credoras no início de 2019, mas que, pressionada pela pandemia, entrou em recuperação judicial em outubro de 2020.

A última etapa que falta do anel viário tem 44 km, abrangendo os municípios de Arujá, Guarulhos e São Paulo. Sua entrega deverá desafogar o trânsito na marginal Tietê, ao servir de alternativa para veículos que apenas cruzam a capital para acessar outras rodovias.

Ao todo, o rodoanel terá cerca de 176 quilômetros de extensão. O primeiro trecho inaugurado foi o Oeste, em 2002, seguido pelo Sul, em 2010, e pelo Leste, em 2014.

De acordo com o modelo projetado, o trecho norte do Rodoanel não terá praças de pedágio, com a cobrança se dando por meio de sensores que calculam o valor devido com base na quilometragem de cada veículo. A previsão inicial é que o valor da tarifa seja de R$ 0,15 por quilômetro rodado.

Para os motoristas com o dispositivo tag, a cobrança do pedágio se dará pelo próprio aparelho. Para aqueles que não possuem o dispositivo, será necessário acessar o site da concessionária para fazer o pagamento, em um prazo de até 15 dias após o tráfego pela rodovia. Passado esse intervalo, será enviado ao motorista um boleto para que o débito seja quitado. Se o pagamento não for realizado no prazo, será emitida uma multa por evasão do pedágio.

Um leilão do trecho Norte do Rodoanel chegou a ser agendado pelo governo anterior de Rodrigo Garcia (PSDB) para o mês de abril de 2022, mas foi suspenso um dia antes da data prevista. Segundo o governo da época, a decisão se deu devido às “incertezas geradas pelo cenário macroeconômico interno”.

Para aumentar o interesse pelo projeto e evitar uma nova suspensão do leilão, houve agora um aumento da taxa interna de retorno oferecida aos investidores, de 8,93% para 9,99% ao ano.

Luiz Felipe Pinto Lima Graziano, sócio de Giamundo Neto Advogados e especialista em concessões, afirmou que a vitória do FIP Via Appia reforça a percepção de uma tendência de ampliação da participação de fundos e empresas do setor financeiro em grandes empreendimentos de infraestrutura.

“Se no passado havia uma preponderância de empresas com origem na construção civil, mais afeitos aos riscos de engenharia e construção, hoje se percebe uma participação mais relevante de competidores de perfil financeiro. As obras necessárias para a conclusão do trecho norte do Rodoanel são desafiadoras e demandarão soluções de engenharia sofisticada, que poderão ser terceirizadas com empresas especializadas, inclusive com a transferência de parte dos riscos de engenharia ao construtor”, afirmou Graziano.

“Houve um amadurecimento grande das condições do negócio, e o governo cedeu bastante porque precisa garantir interessados”, diz Ricardo Levy, sócio da área de infraestrutura do escritório de advocacia Pinheiro Neto.

Levy acrescenta que, em um cenário de juros altos como o atual, é ainda mais desafiador o trabalho de convencimento para atrair empresas interessadas em participar de um negócio de longuíssimo prazo que necessita de investimentos bilionários.

Segundo Levy, aspectos relacionados ao equilíbrio econômico-financeiro durante os 31 anos do projeto, bem como a respeito de eventuais —e prováveis— divergências entre o setor privado e o poder público sobre o estado das obras e a necessidade de investimentos foram endereçados de modo a derrubar as resistências e atrair interessados ao leilão.

Rafael Benini, secretário estadual de Parceria em Investimentos, preferiu não cravar o quanto de obras ainda faltam para concluir o trecho norte do Rodoanel, mas estimativas no momento da interrupção dos trabalhos há cinco anos apontavam para um percentual em torno de 85% dos trabalhos já concluídos.

A construção do trecho norte do Rodoanel foi iniciada em meados de 2013 e está paralisada desde 2018. A obra foi orçada inicialmente em R$ 4,3 bilhões, mas, até 2019, já tinha consumido cerca de R$ 6,85 bilhões, tendo se tornado alvo de investigação por suspeitas de superfaturamento e corrupção.

As empreiteiras que integravam os consórcios, como Coesa (ex-OAS) e Mendes Júnior, foram fortemente atingidas financeiramente pela Lava Jato, entraram em recuperação judicial e foram declaradas como inidôneas pela União.

Na sexta-feira (10), a Coesa chegou a apresentar um mandado de segurança para tentar suspender o leilão, mas teve o pedido negado pela Justiça. A empresa ainda tentou suspender o leilão por meio de um pedido de impugnação no TCE-SP (Tribunal de Contas do Estado de São Paulo), mas que também foi negado. A incorporadora alega que tem direito a indenização devida pelo estado por investimentos que realizou na obra.