Quase dois meses após a confirmação do primeiro caso de coronavírus no País, é possível afirmar que o Brasil enfrenta hoje uma das maiores calamidades de sua história moderna, com profundos reflexos sociais e econômicos.
A pandemia de covid-19 exige demasiado esforço conjunto da sociedade e dos entes federativos, notadamente com a adoção de medidas de restrição de circulação de pessoas e distanciamento social, de modo a evitar a disseminação do vírus e, por consequência, o colapso do sistema público de saúde brasileiro, que demanda a implementação de políticas públicas de combate à pandemia, que devem ser executadas de maneira quase que imediata, sob pena de comprometimento de sua efetividade, considerando a rápida disseminação da doença e seu alto nível de contágio.
O desafio dos gestores públicos neste momento de calamidade é enorme: construção inédita e em tempo recorde de hospitais de campanha, fornecimento de insumos hospitalares e equipamentos de proteção, realização de testes, contratação de profissionais, bem como a prestação de todos os demais serviços públicos adjacentes necessários ao combate da covid-19.
A excepcionalidade da situação, conjugada com o alto nível de contágio e de disseminação do vírus, entretanto, não permite – ou, em último caso, dificulta – que os gestores públicos promovam regulares certames licitatórios, em atendimento aos procedimentos estabelecidos na Lei Federal n.º 8.666/93 e demais legislações atinentes à matéria.
Na maioria dos casos, o próprio decreto do Poder Executivo, que institui o estado de calamidade pública, autoriza a contratação das obras e serviços necessários ao combate da covid-19 de forma emergencial, em consonância com a hipótese de dispensa de licitação expressamente prevista pelo art. 24, inciso IV da Lei Federal n.º 8.666/93.
Com relação aos gastos públicos em tempos de pandemia, a grande questão que se coloca é qual será a forma de fiscalização e de análise das contratações e, mais ainda, qual será a postura adotada pelos órgãos externos de controle, diante da excepcionalidade da situação de calamidade pública e, mais uma vez, da urgência de implementação de políticas públicas de saúde e prestação de serviços pelo Poder Público.
Como exemplo, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou na Sessão Plenária de 08/04/2020 o “Plano de Acompanhamento das Ações de Combate à Covid-19”, que prevê a forma de atuação da Corte de Contas durante a pandemia do coronavírus, estimulando o controle preventivo dos atos administrativos que impliquem em dispêndio de recursos públicos.
Referido plano de atuação é concentrado no acompanhamento das ações adotadas pelos entes federativos e na análise dos impactos causados pela pandemia, de forma que ainda não houve, por parte do Tribunal de Contas da União, definição de referencial de preços ou qualquer outro parâmetro ou critério de análise da conformidade das contratações emergenciais formalizadas durante o período.
Diante desse cenário, é de se esperar que os órgãos de controle externo, sensíveis à excepcional situação de pandemia mundial e calamidade pública, analisem as circunstâncias nas quais celebradas as contratações emergenciais e as dificuldades impostas aos gestores públicos, nos termos das disposições do §1º do art. 22 do Decreto Lei n.º 4.657/42 (“Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB”).
Referido dispositivo foi introduzido pela Lei n.º 13.655/18, conhecida como a Nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que acrescentou 11 novos dispositivos ao Decreto-Lei n.º 4.465/42, com o objetivo de aperfeiçoar a criação e a aplicação das normas de direito público, consolidando a busca estatal por mais segurança jurídica e eficiência na execução de decisões na prestação de serviços, em prestígio ao controle externo eficiente da gestão.
Verifica-se, assim, que a legislação atual impõe ao julgador a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade quando da motivação de suas decisões, considerando os obstáculos e as dificuldades do administrador e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo do direito dos administrados, evitando-se, assim, a determinação de cumprimento de decisões inexequíveis na administração pública, ou que prejudiquem a própria prestação dos serviços públicos.
E é exatamente neste contexto que devem ser exercidos o controle e a fiscalização dos gastos públicos pós-pandemia: considerando as circunstâncias excepcionais nas quais celebradas as contratações, adequando-se, por exemplo, os referenciais de preços de contratação, avaliando a dificuldade e os custos com transporte e fabricação dos insumos necessários à execução dos contratos emergenciais firmados pelo poder público.
De acordo com as disposições da LINDB, portanto, não seria razoável que, após ultrapassada a pandemia, os órgãos de controle externo invalidassem indistintamente contratos emergenciais e aplicassem sanções aos contratantes de acordo com os parâmetros utilizados em situações de normalidade, deixando de prezar pela análise concreta da conjuntura nacional, principalmente com relação aos custos envolvidos à gestão pública, tempo e eficácia das políticas públicas.
É tempo de ação conjunta e direcionada, de implementação de políticas de saúde promovidas pelos entes federativos, de flexibilização das dinâmicas de contratação e execução de ajustes administrativos, bem como de aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na análise dos gastos públicos, buscando, principalmente, garantir a efetividade das medidas de combate à covid-19.
Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 26.04.2020.