por Gabriela Soeltl
O ponto de partida para a breve análise que será feita neste artigo surgiu do questionamento sobre a atual compreensão do princípio da legalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal. Na concepção clássica[1], uma das frentes do referido princípio busca travar possíveis arbitrariedades cometidas pela administração pública em face do administrado, de tal modo que entoamos, não raras as vezes, o (já quase) ditado popular “Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.
E não é de hoje que existem questionamentos acerca da aplicação pura do referido princípio ao caso concreto, os quais são normalmente vinculados à necessária flexibilização da administração pública para lidar com eventos, cujos impactos, simplesmente não foram previstos pelo legislador, exatamente como ocorre com a atual pandemia de covid-19.
Longe da discussão sobre a natureza jurídica dessa situação para fins de alocação de riscos[2], por exemplo, é fato que as consequências geradas pela paralisação quase total do mercado brasileiro geram um cenário de incertezas para o particular que irá contratar com o poder público, ao ponto de se condicionar a prestação de serviços ou fornecimento de bens ao seu pagamento antecipado, com receio do inadimplemento involuntário da obrigação financeira assumida pelo contratante público.
Contudo, a resposta que se tem do outro lado invoca o princípio da legalidade (em contraposição ao atendimento do interesse público) para obstar o prévio recebimento de valores por parte do particular contratado, especialmente em virtude das regras gerais que recaem sobre essa condicionante, contidas nas Leis Federais nºs 8.666/1993 e 4.320/1964, como se verá em seguida.
Por isso é que, em tempos de crise, ganha relevância o debate sobre a transformação do princípio da legalidade, como bem pontuado por Egon Bockmann Moreira em recente artigo publicado no portal jurídico Direito do Estado[3], no qual se destaca o seguinte trecho:
(…) O prédio da legalidade está sendo atingido, portanto. Ao menos na sua compreensão tradicional. O que nos coloca diante de novos desafios, ainda mais agudos do que apenas escrever artigos, teses e dissertações sobre princípio da juridicidade, capacidade normativa de conjuntura e consensualidade administrativa. Tais temas chegaram ao mundo real. Deixaram de ser Law in the books e se tornaram Law in action. Está na hora, portanto, de levarmos a sério a ressignificação do princípio da legalidade e compreender que a administração pública deve atuar “conforme a lei e o Direito” (Lei 9.784/1999, art. 2º, par. ún., inc. I), sempre levando em conta “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” (LINDB, art. 22). (…)
Certos da necessária compreensão da legalidade a partir de um ponto de vista mais atento à prática da gestão pública e a realidade contratual, é que os comentários a seguir buscam demonstrar a possibilidade do pagamento antecipado para consecução de serviços e fornecimento de bens, também a partir da novel Medida Provisória nº 961, quando observados alguns aspectos dessa relação jurídica.
Regras gerais contidas nas Leis Federais nºs 8.666/1993 e 4.320/1964 para o pagamento antecipado
Na Lei Federal nº 8.666/1993, o desenho a respeito do pagamento antecipado tem seu início na previsão do Art. 40, inc. XIV, “d” e de seu §3º, que trata das indicações obrigatórias para os editais de licitação que serão promovidos pela administração pública, sendo importante destacar que “considera-se como adimplemento da obrigação contratual a prestação do serviço, a realização da obra, a entrega do bem ou de parcela destes, bem como qualquer outro evento contratual a cuja ocorrência esteja vinculada a emissão de documento de cobrança”.
Na sequência, os Arts. 55, inc. III, e 65, inc. II, “c”, tratam dos aspectos contratuais que envolvem o pagamento devido ao contratado particular, conformando a disciplina da Lei Federal nº 8.666/1993 sobre o assunto em epígrafe e, como regra geral, vedando a antecipação de pagamento, com relação ao cronograma fixado, sem que haja a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço.
Da análise desses dispositivos, verifica-se que o pagamento está intimamente relacionado ao cumprimento da obrigação pelo particular, sendo possível a sua antecipação, nos termos específicos do art. 40 supracitado, quando previsto, previamente, no instrumento convocatório, na forma de descontos financeiros, e após a execução do objeto contratado.
De outro lado, a Lei Federal nº 4.320/1964, que dispõe sobre as normas gerais de direito financeiro para a elaboração e o controle dos orçamentos e balanços da União, estados, munícipios e do Distrito Federal, determina, em seus arts. 62 e 63, §2º, inc. III, que o pagamento só será feito após regular liquidação, ou seja, quando da verificação do direito adquirido pelo credor.
A princípio, portanto, e como regra geral, não caberia a antecipação de pagamentos em contratos administrativos, com a ressalva realizada para a disposição do art. 40 da Lei Federal nº 8.666/1993.
Nada obstante, ressalta-se que parte da doutrina defende a possibilidade de antecipação de pagamento pela administração pública, mesmo antes da execução do objeto contratado, muito em razão de que não deve existir nenhum distanciamento entre os contratos que são celebrados pelo particular em sua esfera privada, “sob pena de afugentarem os eventuais interessados em contratar com a administração”[4].
No âmbito do Tribunal de Contas da União, tem-se uma evolução na jurisprudência a respeito da possibilidade ou não do pagamento antecipado, considerando as regras gerais previstas no ordenamento jurídico.
Em 2013, por exemplo, a 1ª Câmara do TCU, nos autos do TC 015.127/2009-0, consignou que “a jurisprudência do TCU também é firme no sentido de admitir o pagamento antecipado apenas em condições excepcionais, contratualmente previstas, sendo necessárias ainda garantias que assegurem o pleno cumprimento do objeto”.
Em 2017, nos autos do TC 006.637/2012-4, o Plenário do TCU discorreu sobre os três pressupostos que são determinantes para a ocorrência do pagamento antecipado, ressaltando, ainda, que esse deve ocorrer de maneira excepcional, quais sejam: (i) demonstração prévia pela administração pública (direta ou indireta) da real necessidade do adiantamento a fim de assegurar a devida execução do serviço; (ii) a existência de cláusulas no instrumento convocatório prevendo esse pagamento antecipado; e (iii) a prestação pela contratada de garantias no valor dos pagamentos antecipados. Esse é o entendimento atual que vigora no âmbito da Corte de Contas.
De forma parecida, a Advocacia Geral da União também reconheceu a possibilidade de antecipação de pagamentos em 13/12/2011, por meio da Orientação Normativa nº 37, desde que presentes os seguintes requisitos: (i) represente condição sem a qual não seja possível obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, ou propicie sensível economia de recursos; (ii) existência de previsão no edital de licitação ou nos instrumentos formais de contratação direta; e (iii) adoção de indispensáveis garantias, como as do art. 56 da Lei Federal nº 8.666/93, ou cautelas, como por exemplo, a previsão de devolução do valor antecipado caso não executado o objeto, a comprovação de execução de parte ou etapa do objeto e a emissão de título de crédito pelo contratado, entre outras.
Dessa forma, considerando a disciplina jurídica que foi dada aos dispositivos legais aqui citados, conclui-se pela possibilidade do pagamento antecipado em contratos administrativos, quando em situações excepcionais, devidamente motivadas pelo administrador e precedidas das cautelas definidas pelo TCU e pela AGU, acima citadas.
O reconhecimento da possibilidade de antecipação de pagamentos em situações como as geradas pela covid-19
Questão pendente é a possibilidade de antecipação de pagamentos enquanto vigorar a situação excepcional provocada pela covid-19. Desnecessário pontuar que a pandemia dos últimos meses é um fato novo com implicações igualmente novas para a administração pública e para os administrados, de modo que, até o último dia 6 de maio, não havia uma cartilha a ser seguida. Por isso, é que recomendava-se o diálogo entre administração e administrado, sempre atentos às particularidades da relação contratual, à excepcionalidade da situação, e ao que melhor iria atender o interesse público.
A incerteza com relação ao pagamento antecipado em tempos de covid-19 alterou-se com a edição da Medida Provisória nº 961, que autoriza a antecipação de pagamentos nas licitações e nos contratos administrativos no âmbito da administração pública de todos os entes federativos, além de ampliar o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, desde que (i) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço ou (ii) propicie significativa economia de recursos (art. 1º, inc. II).
Nesse caso, a administração deverá (i) prever a antecipação de pagamento em edital ou em instrumento formal de adjudicação direta e (ii) exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto (art. 1º, §1º). Ainda, conformando o posicionamento até então vigente do TCU e da AGU para situações excepcionais, a norma dispõe que a administração pública poderá prever cautelas aptas a reduzir o risco de inadimplemento contratual, tais como, prestação de garantias nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei Federal nº 8.666/1993, comprovação de execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente, emissão de título de crédito pelo contratado, entre outras (art. 1º, §2º).
Deve-se destacar que há disposição que veda o pagamento antecipado na hipótese de prestação de serviços com dedicação exclusiva de mão de obra (art. 1º, §3º), bem como a aplicação temporal da MP nº 961, que diz respeito aos atos realizados até 31/12/2020, nos termos do Decreto Legislativo nº 06/2020, independentemente do seu prazo ou do prazo de suas prorrogações.
Na prática, e além da MP nº 961, deve-se levar conforto para a decisão do administrador também a partir dos preceitos trazidos pelo Decreto Federal nº 9.830/2019[5], responsável por regulamentar alterações importantes da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, precipuamente sob a ótica do efetivo exercício da gestão pública, de modo se pautar nas consequências práticas, na contextualização dos fatos, nas dificuldades reais do agente público e nas exigências políticas a seu cargo, conferindo, legitimamente, uma maior fluidez de princípios que são caros ao direito administrativo, como é o da legalidade.
A medida vem em boa hora, quando é necessário oferecer novas ferramentas ao gestor público para lidar com o estado de calamidade gerado pela covid-19 e com a escassez de produtos e serviços ocasionados pelo período de quarentena, sendo, inclusive, um problema de ordem internacional. Pondera-se os princípios incidentes ao caso concreto – representados, principalmente, pela legalidade versus interesse público – superando dogmas existentes em prol da eficiência da contratação, desde que preenchidos alguns requisitos determinados pela norma e que são legítimos diante da coisa pública.
Com efeito, tem-se que as consequências geradas pela pandemia de covid-19 irão contribuir com a transformação de vários mandamentos até então incontestáveis no ramo do direito administrativo e que precisavam de uma nova roupagem para restabelecer a eficiência na atuação pública. Espera-se que medidas como as propostas pela MP 961 gerem frutos à relação jurídica sempre existente entre a administração e administrado, de modo que princípios extremamente valorados sejam superados em benefício da melhoria da qualidade decisória do gestor público.
*Gabriela Soeltl, advogada associada da área de Direito Público do escritório Giamundo Neto Advogados
NOTAS
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
[2] A discussão sobre a natureza jurídica dos impactos gerados pelo COVID-19 foi objeto do PARECER nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AG, exarado pela Advocacia-Geral da União (AGU) em resposta à consulta formulada pela Secretaria de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura. Nessa oportunidade, concluiu-se que a pandemia configura um caso tradicional de “força maior” e “caso fortuito”, estando alocado à Administração Pública e, portanto, suscetível de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo.
[3] MOREIRA, Egon Bockmann. Princípio da legalidade em tempos de crise: destroçado ou ressignificado?. Direito do Estado, n. 447, 2020. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/egon-bockmann-moreira/principio-da-legalidade-emtempos-de-crise-destrocado-ou-ressignificado.Acesso em 29/04/2020.
[4] GASPARINI, Diogenes. Pagamento antecipado nos contratos administrativos. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo: Volume 2, 1992, p. 10/14.
[5] Arts. 2º, 3º e 8º, sem prejuízo de outras disposições aplicáveis.
Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 08.05.2020.