Por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
Com o fortalecimento institucional vislumbrado a partir da atual Constituição Federal e o enfoque sistemático na luta contra a corrupção, o sistema sancionador tornou-se mais complexo, especialmente no que diz respeito à quantidade de órgãos e entidades legitimados ao exercício do jus puniendi estatal e de diplomas normativos que disciplinam subsistemas próprios de apuração de infrações e aplicações de sanções administrativas [1].
Esse crescimento orgânico também é, em alguma medida, responsável pela instabilidade e insegurança jurídica muitas vezes sentida pelos administrados. O desafio advindo desse cenário é se pensar em meios de se compatibilizar essas diferentes atribuições de forma mais efetiva.
Como equalizar a execução da penalidade?
A exemplo do que se buscou com a edição da Medida Provisória 703, poder-se-ia idealizar uma espécie de “balcão único” de soluções, em que os agentes passivos da sanção poderiam negociar um acordo de maior alcance com diferentes legitimados [2]. Porém, em nossa visão, um caminho mais efetivo e menos conflituoso — já que envolveria menor disponibilidade de competências — seria, mediante reforma legislativa, pensar nessa equalização no momento da execução da penalidade aplicada, abrindo um campo fértil à articulação institucional.
Para tanto, um primeiro passo seria adotar a distinção comumente empregada pela doutrina entre as sanções de caráter pecuniário ou real, que impactam diretamente o patrimônio do sujeito passivo — tais como as multas e a vedação ao recebimento de benefícios e incentivos fiscais e creditícios — e as sanções de caráter pessoal, que afetam a própria personalidade ou existência do sujeito passivo da sanção — a exemplo da declaração de inidoneidade, da suspensão de atividades, e da dissolução compulsória [3].
Nesse contexto, também não se pode deixar de considerar as medidas de responsabilidade pelo ressarcimento ao erário ou indenização dos prejuízos causados em razão da infração praticada, que apesar de não deterem natureza sancionatória, possuem notório impacto financeiro, equiparando-se, em algum grau, com as sanções reais.
Essa distinção pode lançar as bases de uma proposta inaugural de debate sobre a temática da articulação institucional no momento da execução de penalidades. Assim, mais do que se pensar no tortuoso caminho dessa articulação na aplicação da penalidade, a fase de execução pode abrir um espaço de maior viabilidade, além de consentâneo às principais preocupações do agente sancionado.
Sanções pecuniárias
Nessa toada, para as sanções de natureza pecuniária se poderia pensar em um plano de compatibilização das diferentes penalidades que funcionasse de forma similar ao que já estabelecem os próprios acordos de leniência, porém, com a colaboração efetiva dos órgãos técnicos, principalmente para viabilizar o pagamento de valores que efetivamente observassem a capacidade de pagamento do agente passivo (“ability to pay”). Com isso, também se mitigaria uma discussão bastante recorrente sobre a ausência de competência de determinados órgãos para a definição dos valores de multa e ressarcimento, deixando esse aspecto àqueles entes de caráter mais técnico, por exemplo.
Também seria razoável se pensar na possibilidade de parcelamento do débito de acordo com a capacidade atestada, de modo que as condições desse parcelamento levassem em consideração a condição específica do agente. Tal análise possibilitaria, inclusive, a previsão de benefícios ao sujeito passivo enquanto atrativo ao cumprimento das obrigações de forma mais célere.
Cite-se, nesse sentido, os já reconhecidos benefícios de ordem na cobrança de dívidas solidárias, a cessação da incidência dos juros de mora e o abatimento, do valor total da dívida, dos montantes já quitados a título de sanções pecuniárias atinentes aos mesmos fatos ou aplicadas pela mesma autoridade.
Ainda visando possibilitar a abertura à articulação, seria pertinente que a autoridade competente para a execução da sanção, antes de proceder a qualquer medida restritiva ou providência de cobrança, abrisse a oportunidade para que outros possíveis legitimados manifestassem sua intenção de participar do procedimento de aprovação desse procedimento de negociação, cuja principal premissa seria a própria consensualidade administrativa.
Assim, eventual “homologação” dessa negociação vincularia as partes às condições e prazos ajustados, autorizando-se, inclusive, que a sobrevinda de situação que dificultasse ou impedisse o cumprimento das condições estabelecidas entre as partes fosse devidamente comunicada à autoridade competente e conjuntamente avaliada eventual repactuação do acordo.
Sanções pessoais
Para as sanções de natureza pessoal, poder-se-ia pensar na execução das penas em condição distinta, com a possibilidade de suspensão de seus efeitos pela autoridade competente de forma muito similar ao que ocorre na esfera criminal, com a figura da suspensão condicional da pena ou sursis.
As condições dessa suspensão também poderiam se assemelhar ao instituto penal, prevendo-se, por exemplo, a vedação de reincidência em dado período; a análise de culpabilidade e antecedentes; a observância das condicionantes fixadas pela autoridade competente durante o período de suspensão da penalidade etc.
Essa criação, ao nosso ver, poderia ter resultados positivos. Se por um lado, o sujeito passivo tem afastado o receio da concomitância de penalidades e dos próprios efeitos drásticos desse tipo de sanção; por outro lado, a autoridade competente não abdica, de forma alguma, de sua atribuição sancionatória, podendo revogar a suspensão a qualquer momento se, no curso do prazo, o beneficiário for condenado à nova penalidade de suspensão de licitar, impedimento de contratar ou declaração de inidoneidade por fatos posteriores à condenação cuja execução foi suspensa. Do contrário, isto é, cumpridas as condições, a pena é extinta sem qualquer risco de lesão ao interesse público.
O debate que se propõe, portanto, mais do que pensar na criação de novas competências ou, o que seria ainda mais desafiador, na determinação legal para que os órgãos ou entidades compatibilizassem, entre si, as atribuições sancionatórias que lhes são próprias, se direciona a preservar essas funções através do diálogo institucional, sendo que o campo da execução das penalidades parece ser bem menos propenso ao conflito entre os órgãos e entidades legitimados.
[1] A título de exemplo, somente na esfera federal, uma única infração pode mobilizar a atuação da Controladoria-Geral da União, do Tribunal de Contas da União, da Advocacia-Geral da União, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério Público Federal e do próprio Judiciário. Nesse mesmo contexto, essa ação, a depender de sua caracterização, pode ser objeto de apuração pela Lei Anticorrupção, Lei de Improbidade Administrativa, Lei de Defesa da Concorrência, Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei das Estatais, Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, entre outras.
[2] Nesse sentido: VARELLA, Marcelo Dias, ALENCAR, Carlos Higino Ribeiro de, VIANNA, Marcelo Pontes. Quando mais é menos: Arranjos institucionais e acordos de leniência anticorrupção no Brasil. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n. 233, p. 35‑59, jan./mar. 2022.
[3] Dentre as muitas referências que se utilizam dessa distinção, cite-se BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Sanções administrativas transmissíveis e sanções intransmissíveis. In BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009.
Publicado originalmente no ConJur