por Camillo Giamundo e Gabriela Soeltl

Um novo marco legal do transporte ferroviário, anunciado como um dos mais importantes projetos estratégicos para o país, foi estabelecido pela Medida Provisória 1065/2021, publicada no último dia 30 de agosto, tendo como propósito a regulação da exploração da malha nacional, incluindo as ferrovias privadas.

Além de criar as figuras do Operador Ferroviário Independente e da Administradora Ferroviária, pessoas jurídicas responsáveis pela prestação de serviços de logística e de transporte ferroviário, respectivamente, o principal aspecto da MP é a desburocratização do procedimento de autorização para construção de novas ferrovias, visando facilitar a exploração, pela iniciativa privada, de linhas curtas (“short lines”), e assim promover a atração de investimentos privados ao setor, o que também será realizado por meio do Programa de Autorizações Ferroviárias (PAF). Outro objetivo intrínseco da medida é o aumento da capacidade desse tipo de modal no país, com a consequente redução dos custos de logística, ampliação da concorrência e a entrada de novos players.

A iniciativa é bem-vinda. Embora com grandes possibilidades, o Brasil possui uma malha ferroviária insuficiente e mal distribuída, considerando as dimensões continentais do país. Segundo a exposição de motivos da MP, cerca de 30% das ferrovias encontram-se subutilizadas ou não possuem operação comercial, fato que impõe reflexos na eficiência e participação do setor na economia e infraestrutura brasileira, além de propiciar novas oportunidades de trabalho, reaquecendo todo o mercado nacional, em virtude dos efeitos da pandemia.

A superação dessa deficiência é uma das intenções do novo marco legal, ao possibilitar, por exemplo, a construção de novas ferrovias através de autorização simplificada, sem necessidade de licitação, bem como a revitalização de trechos desativados, devolvidos ou ociosos, para os quais também será permitida a autorização, a partir da abertura de processo de chamamento público.

Ao acolher o instituto como uma possibilidade de exploração pelo regime de direito privado, a MP se alinha aos estados do Mato Grosso, Pará e Minas Gerais, que criaram a autorização ferroviária estadual para incentivar o investimento privado em infraestrutura – e que apresentam resultados positivos -, e repetem experiência semelhante àquela vivenciada nos setores de telecomunicação, portuário e aeroportuário, que contam com a outorga de autorizações aos privados.

No sistema vigente, as ferrovias públicas possuem operação com base em concessão ou permissão, mediante processo licitatório, para construção e exploração dos trechos. Contudo, os entes públicos já avaliavam a incorporação da autorização, conforme arts. 21, XII, “d” e 170 da Constituição Federal, em virtude da burocratização gerada pelos institutos com regime de direito público e a ausência de atratividade ao setor privado.

Pontos sensíveis levantados pela Proposta de Legislação Federal 261/2018, que deu início ao marco instituído pela MP 1065/2021, foram os limites da regulação e o necessário equilíbrio entre os aspectos da autorização, e os direitos e deveres das concessionárias. No atual cenário, em que as ferrovias são exploradas por concessão ou permissão, a inserção de uma nova possibilidade de exploração, agora pelo regime de direito privado, implicaria inegável assimetria regulatória, diante da coexistência de regimes divergentes.

A preocupação foi respondida pela MP 1065/2021 ao estabelecer um procedimento para a migração ao regime de autorização, considerando eventual prejuízo sentido pela concessionária com a operação de ferrovia autorizada. De acordo com o art. 34 da medida provisória, a decisão relativa ao processo de migração – ou adaptação, conforme expressão utilizada pelo dispositivo -, caberá ao Ministério da Infraestrutura, além de ser condicionada à inexistência de multas ou encargos setoriais não pagos à União, manutenção das obrigações financeiras, prestação de serviço adequado e manutenção de serviços de transporte de passageiros no novo contrato de autorização, quando a concessionária já operar linha regular de transporte de passageiros (§5º do art. 34).

De qualquer forma, regulado o processo de migração, a exemplo do que ocorreu no setor de telecomunicações, é possível que a assimetria regulatória oportunize o esvaziamento das concessões ferroviárias, facilitando a adaptação ao regime de autorização, sem prejuízo ao interesse público, em razão das condições a serem cumpridas pela concessionária.

Vê-se que a MP 1065/2021 almeja o crescimento econômico, efetivo e sustentável, do setor de ferrovias nacional, com o estabelecimento de previsões importantes para que as outorgas de autorização ocorram com o comprometimento à segurança jurídica e à eficiência de toda a infraestrutura.

Espera-se que esse seja o objetivo principal da regulação no Brasil, possibilitando que o Direito possa contribuir na correção de falhas de mercado, sem prejuízo da estabilidade das regras econômicas e jurídicas até então vigentes.

 

Artigo originalmente publicado em 09.09.2021, na coluna Gestão, Política & Sociedade, do Estadão.