Apesar de tímida inovação, nova Lei de Licitações aprimora instrumentos originados do diploma anterior
FERNANDA LEONI
ROBERTA SANTOS CARDOSO
Trazendo parte da disciplina que já constava da legislação anterior, a Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações), de forma compatível com os princípios que a regem, reorganizou o estabelecimento da denominada margem de preferência em licitações, reforçando o papel indutor desse instrumento para a promoção de políticas públicas de desenvolvimento do mercado nacional e da sustentabilidade.
Um primeiro aspecto aprimorado pela nova norma foi a separação entre critérios de desempate e efetiva margem de preferência. Sob a égide da Lei 8.666/1993 ambos os temas se encontravam disciplinados no mesmo dispositivo (artigo 3º), causando certa confusão de conceitos. Na nova legislação, a margem de preferência se encontra disciplinada no artigo 26 — atualmente regulamentada pelo Decreto 11.890/2024, na esfera federal —, enquanto os critérios de desempate estão estabelecidos no artigo 60.
Sobre os critérios de desempate, além de critérios comuns, o artigo 60 estabelece mecanismos que trazem à tona esse papel indutor das licitações já na primeira etapa de empate, estabelecendo a presença de políticas de equidade de gênero no ambiente de trabalho e a presença de programa de integridade como fatores de escolha preferencial de um licitante frente aos seus concorrentes.
Se ainda assim o empate permanecer, dá-se preferência, de forma sucessiva, ao licitante da mesma esfera federativa do contratante — importante instrumento de regionalização —, à empresa brasileira, à empresa que invista em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia no país — ambos mecanismos de fortalecimento do capital nacional — e às empresas que comprovem práticas de mitigação de impactos ao meio ambiente — em prol do desenvolvimento sustentável.
Ainda, a norma é expressa em assegurar que essas garantias não prejudicam às preferências detidas pelas microempresas e empresas de pequeno porte, nos termos da legislação aplicável, reforçando o compromisso de desenvolvimento econômico.
Já no âmbito das margens de preferência, a norma autoriza, como discricionariedade ao gestor, privilegiar a contratação de bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras e de bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis.
A inovação fica por conta desta última preferência, coadunando-se tanto ao objetivo de incentivo à inovação e ao desenvolvimento nacional sustentável, estabelecido no artigo 11, inciso IV da norma, como aos relevantes compromissos assumidos pelo país em diferentes agendas internacionais de desenvolvimento.
A materialização dessa preferência, previamente justificada no processo licitatório — o que no caso dos bens manufaturados e serviços nacionais não é uma faculdade, mas uma obrigação legal —, se dá pela concessão de um percentual de até 10% do preço ofertado comparativamente aos demais concorrentes.
Significa que na classificação de preços, o proponente com valores até 10% superiores ao melhor colocado pode, ainda assim, classificar-se na primeira colocação se detiver característica que lhe assegure tal preferência. A melhor proposta, neste caso, conjuga o menor valor com uma finalidade de interesse público assegurada pela preferência (desenvolvimento nacional, sustentabilidade, etc.).
Especificamente para o caso de bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no país, essa margem de preferência pode chegar ao percentual de até 20%.
Apesar do comando legal determinando a regulação de quais bens e serviços seriam assim enquadrados, o Decreto 11.890/2024 não trouxe disposições muito precisas sobre o tema, apenas regulamentando as competências federais para essa definição, implicando regulação infralegal, a despeito do que estabelece a Lei de Licitações.
Também interessante a disposição sobre a possibilidade de extensão da margem de preferência a bens manufaturados e serviços originários de Estados-partes do Mercado Comum do Sul (Mercosul), desde que haja reciprocidade com o país prevista em acordo internacional aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo presidente da República (artigo 26, §1º, inciso III). Trata-se de importante instrumento de integração entre os países do sul global, promovendo um incentivo ao desenvolvimento nacional de forma mais ampla, pensado de dentro para fora.
O que se verifica, portanto, é que a atual legislação, apesar de uma tímida inovação quanto à criação de novos instrumentos, aprimora aqueles originados do diploma anterior, reorganiza as temáticas e fortalece o fomento a políticas governamentais pelo uso das licitações também em sua finalidade indutora ou social, cumprindo, a médio e longo prazo, aferir se, de fato, esses preferências são empregadas e se atingem aos objetivos a elas estabelecidos.
FERNANDA LEONI – Doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC, especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada no Giamundo Neto Advogados Associados
ROBERTA SANTOS CARDOSO – Acadêmica de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e estagiária no Giamundo Neto Advogados Associados