por Giuseppe Giamundo Neto, Davi Madalon Fraga e Fernanda Leoni
No Boletim de Jurisprudência 431, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou a ementa do Acórdão 2.770, proferido pelo plenário em sessão realizada em 13/12/2022, em que se registrou que “nos processos de controle externo, a matéria de ordem pública, a exemplo da prescrição da pretensão punitiva ou ressarcitória, não pode ser rediscutida via embargos de declaração ou mediante provocação da parte por simples petição, tampouco pode ser revista de ofício, diante da incidência da preclusão pro judicato”.
O caso tratava de Embargos de Declaração opostos em face de acórdão em Tomada de Contas Especial relacionada a supostas irregularidades em contratos firmados pela Petrobras objetivando a construção da Unidade de Exploração e Produção da Bacia de Campos. Além de invocar o vício de omissão, a peça continha pedido subsidiário para o seu recebimento como simples petição, em consonância à garantia prevista no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal.
Em suma, o Embargante requeria a aplicação do novo entendimento do tribunal acerca do prazo prescricional quinquenal das pretensões punitivas e ressarcitórias. O pedido foi embasado no artigo 10, da Resolução TCU 344/2022, que admite o reconhecimento de prescrição de ofício ou a pedido da parte, em qualquer fase processual. A nova orientação lhe seria benéfica, visto que a posição do TCU até aquele momento era pela imprescritibilidade do débito.
Pontuando que a superveniência de uma nova orientação normativa da corte, ainda que mais justa, não autorizaria o uso abusivo de espécie recursal, o ministro Walton de Alencar, relator do processo, entendeu que os embargos seriam meramente protelatórios e visariam, em verdade, alterar o mérito da decisão proferida anteriormente, a qual considerou o ressarcimento ao erário imprescritível.
Apesar de confirmar a caracterização da prescrição enquanto matéria de ordem pública, o ministro pontuou que o seu reconhecimento apenas seria possível se a matéria ainda não houvesse sido julgada, em razão da preclusão pro judicato, que impediria a rediscussão do tema pela via dos embargos declaratórios. Nesse sentido, sustentou-se em julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo o qual “as matérias de ordem pública estão sujeitas à preclusão pro judicato, razão pela qual não podem ser revisitadas se já foram objeto de anterior manifestação jurisdicional[1]”.
Ao contrário do que possa parecer, não se trata de temática pacífica na esfera processual. A preclusão pro judicato, quando admitida, tem relação com algumas estabilizações a que o juízo fica condicionado[2] — a exemplo da própria coisa julgada —, representando um direito da parte em não ter a segurança do conteúdo decisório afetado. Trata-se, pois, de uma garantia, e não de um condicionamento à atuação procedimental da parte em invocar matéria de ordem pública em qualquer momento e grau de jurisdição.
Para se invocar a preclusão pro judicato, que nada mais é do que espécie de preclusão de natureza consumativa, haveria a necessidade de que a matéria estivesse estabilizada ou, em termos de processo de contas, houvesse a consolidação da coisa julgada administrativa, o que não teria ocorrido no caso avaliado, em que ainda existia a possibilidade de discussão da matéria em sede de declaratórios — uma das medidas aptas à alteração da decisão, por aplicação subsidiária do artigo 494, inciso II, do CPC.
Também importante esclarecer que a Resolução 344/2022, além de não ter estabelecido qualquer regra de transição para o instituto, apenas vedou o reconhecimento da prescrição quinquenal aos processos que já houvessem transitado em julgado quando de sua entrada em vigor[3], reforçando a compreensão de que o normativo tinha aplicação imediata a todo o processo ainda não estabilizado, podendo as partes, enquanto presente abertura à rediscussão, levar a temática ao conhecimento do relator ou plenário.
Como se tudo isso não fosse suficiente, há de se considerar que tratando-se de fato novo, atinente à regulamentação de matéria até então não disciplinada pelo TCU, a parte utilizou-se da primeira oportunidade que tinha para falar nos autos, invocando o que de direito. Com efeito, a preclusão não se opera com relação ao fato superveniente[4], visto que não se trata da rediscussão de um tema esgotado, mas de uma questão nova em debate: a prevalência de uma nova disciplina legal, com vigência imediata, e que privilegia a segurança jurídica[5].
A posição do TCU, portanto, não se mostra acertada. Não se configura preclusão sobre matéria de ordem pública (prescrição) cujo conteúdo ainda não transitou em julgado, ainda que suscitada por meio de declaratórios. A orientação do Tribunal a respeito deve ser modificada, sobretudo diante de sua própria recém editada regulamentação.
[1] Cf. STJ, AgInt no REsp 1.756.189/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 8/6/2020, DJe de 12/6/2020.
[2] Cf.: SCARPINELA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de direito processual civil. Vol. 01. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 489.
[3] Cf.: “Art. 18. O disposto nesta resolução aplica-se somente aos processos nos quais não tenha ocorrido o trânsito em julgado no TCU até a data de publicação desta norma”.
[4] Cf.: “A preclusão aqui defendida obviamente não se opera tendo em :, vista fato superveniente. Conforme já se disse, é possível que, por fato superveniente, deixe de existir um requisito de admissibilidade do processo (exemplos: incompetência absoluta superveniente e perda da capacidade processual). Exatamente por tratar-se de fato superveniente, a anterior decisão que reconheceu a regularidade do processo não lhe diz respeito, impondo-se nova decisão, que terá outro objeto: a questão nova” (DIDIER JR. Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 01. 19ª Ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2017, p. 787).
[5] Cf. artigo 30, da LINDB: “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.
Artigo originalmente publicado por Jota, em 17.02.2023.