Por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
De caráter muitas vezes técnico, os processos de fiscalização conduzidos pelos tribunais de contas são demarcados por uma linguagem própria, que envolve não somente o debate legal ou normativo sobre a ação pública, mas também aspectos contábeis, financeiros, orçamentários e de engenharia que fogem à análise de mera subsunção legal. Por decorrência, a prova produzida nesses processos não é de simples adequação normativa, mas de efetiva demonstração de elementos que envolvem diferentes áreas do conhecimento científico.
Nesse sentido, os contornos da prova produzida nos processos conduzidos pelos tribunais de contas — aqui compreendidos desde as auditorias de atos e contratos até as prestações de contas de gestão — são diversos e, muitas vezes, superam a demonstração documental, demandando um conhecimento especializado de determinadas temáticas de cunho técnico. Essa realidade está especialmente presente nas auditorias de contratos de engenharia, que não raramente envolve tanto um conhecimento próprio da engenharia de custos e aplicação de referenciais de preços, como também da engenharia civil, relativamente à adequação do custo àquela atividade precificada.
Tem-se assim, em muitos casos, a necessidade de se produzir uma prova de natureza técnica que, em algumas situações, acaba por se assemelhar a uma prova pericial, visto que envolve o conhecimento técnico em dada área/temática, a análise pormenorizada de elementos igualmente técnicos e um terceiro imparcial responsável por essa avaliação. Essa prova contrapor-se-ia, em termos técnicos, às avaliações realizadas pelas unidades de fiscalização dos tribunais de contas, geralmente dotadas de relevante especialização nas temáticas para as quais voltadas e que, por isso mesmo, usam uma linguagem nem sempre apreensível pelos gestores públicos e demais jurisdicionados.
Nesse contexto, a produção de documentos técnicos e o debate qualificado entre profissionais detentores de um mesmo conhecimento científico acabam por criar um cenário em que a prova técnica — ou pericial se assim preferível denominar — estão diretamente conectadas ao próprio direito ao contraditório e à ampla defesa. O debate jurídico, como mencionado, acaba sendo secundário e por certo desprezado se dissociado de elementos técnicos comprobatórios das alegações.
Apesar da relevância dessa temática, são poucos os tribunais de contas que permitem expressamente em seus normativos a produção da prova técnica, especialmente aquele de natureza pericial, assim entendida a que envolva um terceiro imparcial opinando tecnicamente sobre determinada matéria. Pelo contrário, é recorrente o entendimento de que o processo de controle não prevê esse tipo de prova [1].
Veja-se que, embora se desconheça qualquer vedação ou inadmissão por parte dos tribunais de contas para o recebimento da prova de caráter técnico na forma documental — a qual, de qualquer forma, estaria contemplada pela cláusula geral do devido processo legal —, essa espécie não necessariamente contemplará a complexidade necessária ao esclarecimento da matéria posta em debate. Em verdade, essa é a questão central. Não há efetivo debate, sendo os trabalhos técnicos recebidos como um elemento documental adicional, sem o mesmo peso de um laudo pericial.
Ainda, a questão da regulamentação do tema no âmbito das cortes de contas — bastante reduzida, como mencionado — é mais do que um simples detalhe, visto que confere segurança à parte para que possa se valer dessa prerrogativa de forma efetiva e sem limitações. Por outro lado, na atualidade, apenas cinco tribunais de contas possuem alguma disposição específica sobre o tema [2], com especial destaque para o Tribunal de Contas dos municípios do Pará [3] e o Tribunal de Contas do Município de São Paulo [4], que possuem regulação mais exaustiva sobre o tema, e para o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro [5], que autoriza a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.
Com efeito, a falta de previsão normativa adequada ou o indeferimento desse tipo de prova sob o pretexto de que se coloca como medida dispensável, acaba por levar à desnecessária judicialização [6]. Sobre o tema, inclusive, o Supremo Tribunal de Federal possui relevante precedente em sede de mandado de segurança impetrado em face de decisão do Tribunal de Contas da União, em que consignou a impossibilidade de indeferimento de prova pericial fundamentadamente requisitada pela parte enquanto mecanismo constitucional de defesa [7].
Por outro lado, a aceitação da prova pericial torna mais segura e certeira a decisão para o próprio órgão controlador, garante a plenitude de defesa ao seu jurisdicionado e, sobretudo, dá ensejo a um diálogo mais qualificado, que permita que também a parte ou responsável possa contrapor os argumentos e elementos técnicos produzidos pelas cortes de contas em sua inegável especialização. Nem mesmo eventual malefício da redução da celeridade seria pertinente como argumento contrário a esse tipo de prova, na medida em que a tecnicidade já é inerente aos processos de controle.
Por fim, a viabilização desse tipo de prova, mesmo para os tribunais que não a tenham previsto de forma expressa, pode se sustentar na aplicação subsidiária ou supletiva das disposições do Código de Processo Civil, como afinal autoriza a próprio diploma processual [8], adaptando os procedimentos judiciais às peculiaridades do processo de controle, como se já vem fazendo com diversos outros institutos dessa natureza[9], não havendo, como pontuado, empecilhos procedimentais que efetivamente impeçam essa ampliação da fase probatória no âmbito dos tribunais de contas.
NOTAS
[1] Nesse sentido, vide enunciado disponibilizado pelo Tribunal de Contas da União: “O processo de controle externo, disciplinado pela Lei 8.443/1992 e pelo Regimento Interno do TCU, não prevê a produção de prova pericial, cabendo ao responsável trazer aos autos os elementos que entender necessários para sua defesa, inclusive laudos periciais, o que prescinde de autorização do Tribunal” (TCU. Acórdão nº 5.040/2022 – 2ª Câmara, Relator Ministro Bruno Dantas, Sessão de 06/09/2022).
[2] São os casos das disposições dos regimentos internos do TCE-AL (art. 129, III), do TCE-PA (art. 77), TCM-PA (art. 454), TCM-RJ (art. 138) e TCM-SP (art. 124).
[3] Cf.: “Art. 454. (…) § 1º. A requerimento do responsável, do Ministério Público de Contas dos Municípios do Estado do Pará ou de terceiro interessado, bem como por proposição do Relator, observada a complexidade da matéria ou a especificidade da prova a ser produzida ou apreciada, proceder-se-á com a realização de perícia técnica ou científica especializada. § 2º Em quaisquer das hipóteses fixadas no § 1º deste artigo, competirá ao Tribunal Pleno, a autorização para realização de perícia. § 3º Na apreciação do requerimento de produção de prova pericial, deverão ser observados, impositivamente, a sua imprescindibilidade para apuração dos fatos; a complexidade e especificidade da matéria e, ainda, a inexistência de técnicos habilitados, no âmbito do TCMPA, para apreciação e/ou produção da prova. § 4º Aplicar-se-á, no âmbito do TCMPA, quanto ao requerimento e demais procedimentos periciais, quando deferidos pelo Tribunal Pleno, as regras fixadas nos artigos 464 a 480, do Código de Processo Civil Brasileiro, exceto quanto às custas e honorários periciais. § 5º As custas e honorários periciais serão suportados pela parte requerente, a qual será instada a efetuar seu pagamento, no prazo máximo de 10 (dez) dias, sob pena de desistência tácita do pedido de produção de prova”.
[4] Cf.: “Art. 124 – A critério do Relator ou Juiz Singular, integrarão a instrução processual todos os elementos necessários ao julgamento dos feitos, a saber: I – a documentação referida no artigo 2º, § 1º, deste Regimento; II – a inspeção pessoal efetivada pelo Conselheiro ou por funcionário por ele especialmente designado; III – os dados e relatórios de auditorias, acompanhamentos, inspeções e análises; IV – os pareceres dos órgãos técnicos do Tribunal; V – o depoimento pessoal das partes; VI – a oitiva de testemunhas; VII – a juntada de documentos; VIII – a exibição de documento ou prova material; IX – o laudo pericial; X – todas as demais provas admitidas em direito”.
[5] Cf.: “Art. 138. As provas que a parte quiser produzir perante o Tribunal devem ser, preferencialmente, apresentadas de forma documental, mesmo as declarações pessoais de terceiros.§ 1º Quando requeridas diligências e perícias pela parte, serão aplicadas, no que couber, as disposições do Código de Processo Civil. § 2º As provas propostas pela parte somente poderão ser recusadas pelo Tribunal, mediante decisão fundamentada, quando forem ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias”.
[6] Nesse sentido, vide decisão do TRF5, questionando a limitação à prova pericial no âmbito do TCU: “Outrossim, analisando-se a Tomada de Contas Especial n.º 021.409/2003-4, é possível perceber que a demandante, reiteradas vezes, requereu a realização de perícia técnica com profissional especialista em portos, nos termos determinados pelo próprio TCU no Acórdão n.º 1051/2003- Plenário, tendo seus pedidos sumariamente negados, sob o argumento simplista de que o quadro técnico da SECEX/RN teria know-how suficiente para analisar a questão, de modo que é clarividente que houve cerceamento de defesa por parte da demandada” (TRF5. Apelação nº 0810399-40.2016.4.05.8400. Relator Desembargador Federal Leonardo Carvalho. Julgado em 22/05/2020).
[7] Trata-se do Mandado de Segurança nº 26.358, relatado pelo Ministro Celso de Mello.
[8] Cf.: “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”.
[9] É o que ocorre, por exemplo, com a prova emprestada, prevista no art. 375, do CPC, e comumente utilizada em processos do TCU.
Artigo publicado no Consultor Jurídico.