Por Camillo Giamundo e Brenda Monticelli
Passados dez anos da entrada em vigor da Lei nº 12.846/13, a “lei anticorrupção”, é natural que surjam discussões críticas direcionadas ao aprimoramento de sua aplicação. Em especial, nos últimos meses tem sido notável o crescimento do debate sobre a possibilidade e os limites de revisões no âmbito dos acordos de leniência celebrados entre empresas e as autoridades signatárias, especialmente após o evento da operação “spoofing“, deflagrada pela Polícia Federal em julho de 2019, cujo objetivo era a investigação e combate de atividades de hackers, relacionadas à invasão de celulares de autoridades brasileiras, e que revelou uma série de trocas de mensagens que indicavam a adoção de expedientes incomuns para busca e apreensão de bens e pessoas, para a condução dos processos e para a condenação dos investigados. Diante desse cenário, viu-se que os acordos de leniência e de colaboração poderiam ter sido firmados sob coação, o que enseja a necessidade de sua revisão e repactuação.
Nesse contexto, é crucial ponderar se, em meio a possíveis revisões desses acordos, o interesse público, representando a dimensão coletiva dos interesses individuais, continuaria a ser respeitado ou se acabaria subjugado em favor de interesses particulares das empresas lenientes.
Para enfrentar essa questão, é importante compreender que a consensualidade presente nos acordos celebrados entre a administração pública e os interessados não implica em uma renúncia do interesse público em favor do interesse privado. Na verdade, representa uma flexibilização da conduta unicamente sancionatória da administração pública por meio de uma abordagem dialógica, buscando atender ao interesse público de maneira mais eficiente. É nesse sentido, inclusive, o entendimento de Gustavo Henrique Justino de Oliveira e Fernanda Santos Scharamm, que destacam que “[a] bem da verdade, a via consensual pode traduzir maior grau de certeza à realização do interesse público, na medida em que possui a concordância do particular com o cumprimento das obrigações acordadas”. [1]
Também é importante lembrar que é através da consensualidade que envolve o acordo de leniência que o ente público, de modo mais célere e eficaz, encontra o acréscimo investigativo de atos de difícil ou de impossível identificação, possibilitando a continuidade de importantes investigações e no combate à corrupção.
Portanto, considerando que a execução desses acordos se dá ao longo do tempo, esbarramos na necessidade de preservar a consensualidade por meio da possibilidade de revisão e repactuação dos acordos, garantindo que esses instrumentos permaneçam proporcionais, exequíveis e relevantes até o final de seu cumprimento.
Renegociação de acordos
A possibilidade de renegociar as obrigações estipuladas nos acordos de leniência é delineada no artigo 54 do Decreto nº 11.129/2022, o qual regulamenta a Lei Anticorrupção. Este dispositivo estabelece a possibilidade de alteração ou substituição de obrigações pactuadas no acordo de leniência, desde que presentes os seguintes requisitos de forma cumulativa:
- manutenção dos resultados e requisitos originais que fundamentaram o acordo de leniência;
- maior vantagem para a administração, de maneira que sejam alcançadas melhores consequências para o interesse público do que a declaração de descumprimento e a rescisão do acordo;
- imprevisão da circunstância que dá causa ao pedido de modificação ou à impossibilidade de cumprimento das condições originalmente pactuadas;
- boa-fé da pessoa jurídica colaboradora em comunicar a impossibilidade do cumprimento de uma obrigação antes do vencimento do prazo para seu adimplemento;
- higidez das garantias apresentadas no acordo.
Na mesma linha de pensamento, vale ressaltar o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) que serve como referência para a utilização da via consensual pela administração pública e, em seu §1º, inciso I, estipula que o compromisso firmado por meio de composição com a administração deve visar a uma solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais. Em nosso entendimento, essa solução jurídica só é efetivamente alcançada se observada ao longo de toda a execução do acordo, fato que se torna palpável a partir da possibilidade de readequação desses acordos.
Com base nisso, ao reconhecer que o acordo de leniência é um mecanismo legitimado pelo ordenamento jurídico brasileiro, cujo propósito é combater atos de corrupção, é razoável concluir que a revisão desses acordos, também respaldada pela legislação pátria, proporciona maior eficácia e segurança para o efetivo alcance do interesse público.
Além disso, considerando os efeitos financeiros presentes nos acordos de leniência e que o cenário de desenvolvimento econômico enfrentou sérias consequências nos últimos anos, torna-se imperativo utilizar a abertura dialógica proporcionada pela via consensual para manter o equilíbrio entre as obrigações estabelecidas, garantindo que sejam alcançáveis.
Não se trata de impunidade
O objetivo não é sugerir impunidade ou a transferência do ônus dos atos de corrupção à administração, mas a readequação das obrigações, especialmente as financeiras, a fim que de que haja o ressarcimento ao erário e o pagamento de multas, todavia, de modo que atividade empresarial também seja preservada, oferecendo maior possibilidade de cumprimento do interesse público.
Ressalte-se, também, que, além de garantir o equilíbrio essencial para atender ao interesse público, a revisão dos acordos é um instrumento capaz de identificar questões problemáticas durante a celebração desses acordos. Isso, por sua vez, pode influenciar na definição de padrões e parâmetros mais vantajosos para futuros acordos, além de torná-los mais transparentes no que diz respeito às sanções e aos critérios de reparação.
Além disso, conforme estabelecido no artigo 54, parágrafo único do Decreto nº 11.129/2022, os requerimentos de revisão serão analisados considerando o grau de adimplência de outras obrigações pactuadas, destacando-se a adoção ou aperfeiçoamento do programa de integridade. Nesse contexto, o instituto da revisão também se mostra um mecanismo eficaz para estimular o cumprimento das obrigações acordadas.
De fato, conforme explorado, enquanto agente unicamente sancionador o Estado não alcança os mesmos resultados daqueles encontrados quando da abertura do diálogo e da consensualidade. Assim, apesar das críticas e receios, revisitar os acordos mostra-se um verdadeiro instrumento apto a promover a garantia do interesse público durante toda a execução da leniência.
Publicado originalmente no Conjur.