Por: Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni
O debate recente sobre os resultados efetivos da operação “lava jato” — que, neste ano, completou dez anos — e a conclusão de que muitos dos acordos e apurações realizados foram, no mínimo, abusivos, trouxe à tona importante discussão sobre a possibilidade jurídica e limites da revisão dos acordos de leniência firmados no contexto desta operação.
De modo geral, a renegociação parece viável diante de circunstâncias fáticas ou jurídicas que denotem que as premissas usadas para a fixação de obrigações de parte a parte não são mais sustentáveis no cenário atual. Mudanças no contexto fático, alterações legislativas, adaptação às novas exigências interpretativas e às próprias condições de observância das obrigações estabelecidas são apenas alguns exemplos de possíveis motes de uma revisão juridicamente fundamentada.
Apesar da possibilidade dessa revisão ser pouco questionada, os limites do tipo de obrigação que pode ser pactuada, excluída ou incorporada como novidade aos acordos em negociação ainda são pouco claros. Este texto propõe-se a um breve debate sobre a exclusão, dos acordos, de valores pretensamente devidos às empresas estatais que tenham sido desestatizadas, valendo-se do pressuposto de que não mais recai, sobre quaisquer valores discutidos, a pecha de público.
Como explorado em artigo anteriormente publicado neste portal , o TCU, avaliando os impactos do procedimento de desestatização da sociedade de propósito específico Norte Energia S.A. (Nesa) — então controlada pela Eletrobras —, que atuou como concessionária responsável pela construção, operação e manutenção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, concluiu ter se encerrado qualquer jurisdição outrora detida, inexistindo interesse ou legitimidade para perseguir possível dano à empresa que não mais teria qualquer participação estatal.
Para o TCU, que inclusive cita diversos outros precedentes no mesmo sentido, estariam ausentes os pressupostos de constituição válida e regular de uma tomada de contas especial visando à reparação do pretenso dano, fosse ele ocasionado à sociedade empresária ou à sua acionista estatal federal, posto que a matéria passaria ao âmbito privado, afastando a sua jurisdição.
Jurisdição
Se falta ao TCU, na condição de controle externo, jurisdição sobre as contas e contratações de estatais, com idêntica razão faltaria à CGU, na condição de controle interno, e aos demais legitimados para o acordo de leniência atribuições voltadas à gestão de recursos financeiros de natureza estritamente privada.
Nesse sentido é que se compreende plenamente possível — e necessária — a exclusão, dos valores consignados a título de ressarcimento, daqueles montantes pertencentes, no passado, a empresa pública ou sociedade de economia mista posteriormente privatizada, impedindo que se faça, por meio desses acordos, a gestão de recursos eminentemente privados.
Veja-se que a questão não implicaria qualquer tipo de prejuízo por parte da empresa privatizada em reaver indenizações de qualquer natureza por eventuais prejuízos que entenda praticados contra si, mas apenas consignaria que esse ressarcimento seria objeto de providências a serem conduzidas na seara privada, não integrando o acordo do qual são beneficiários apenas órgãos e entidades da Administração Pública, dada a própria natureza do instrumento.
Além disso, esse tipo de revisão não importaria qualquer alteração relevante nos termos da colaboração ou de eventuais penalidades aplicáveis — o que sequer encontraria óbice —, mas apenas a exclusão dos respectivos montantes especificamente consignados no acordo.
No contexto da revisão dos acordos de leniência, portanto, é de fundamental importância o expurgo de rubricas ou valores que não mais se coadunam ao seu escopo original, garantindo-se a eficácia e justiça ao longo do tempo desses acordos. A exclusão de ressarcimentos antes direcionados a empresas estatais agora desestatizadas, ademais, tem o condão de afastar a tutela de interesses e recursos privados pelo Poder Público, que deve concentrar seus esforços na preservação do erário.
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico