A possibilidade de dinamização do ônus probatório no Tribunal de Contas

Aquele que utilize bens, dinheiros e valores públicos tem o dever de prestar contas. Essa obrigação deriva da Constituição Federal (art. 70, §ú). O Decreto-Lei 200/1967, igualmente, determina o dever de justificação do bom e regular emprego de dinheiros públicos por quem os utilize (art. 93). No mesmo sentido, a Lei n. 8.666/93 estabelece competir aos responsáveis por contratos e demais instrumentos regidos pela lei a demonstração, perante o Tribunal de Contas, da legalidade e regularidade da despesa e da execução (art. 113, caput).

A partir dessas disposições verifica-se que nos processos administrativos do Tribunal de Contas que tratem de prestação ou de tomadas de contas ordinária, cabe ao respectivo responsável provar o bom emprego dos recursos utilizados. A tomada de contas ordinária compreende a submissão, por parte do ordenador de despesas, de suas contas ao Tribunal ao final do exercício (arts. 81 e 81, do Decreto-Lei 200/67, e art. 7º, da Lei Orgânica do TCU). O Tribunal de Contas, em tais processos, tem uma atuação passiva, visto que examina os documentos e informações que o gestor público disponibiliza.

É, assim, decorrência lógica que em tais circunstâncias o ônus probatório acerca da regularidade da aplicação dos recursos públicos recaia ao ordenador de despesa, na medida em que conhecedor das particularidades e aspectos fáticos que envolvem a situação concreta

Com isso, observa-se a prevalência em processos de prestação ou tomada de contas ordinária, como regra, da inversão do ônus da prova, na medida em que se transfere ao responsável o ônus de comprovar a regularidade da utilização dos recursos públicos sob a sua gestão. Caso não a demonstre, resta confirmada a constatação de irregularidade apontada pela auditoria, com as respectivas consequências cabíveis (instauração de processo de tomada de contas especial, condenação em débito, multa etc.).

No tocante aos processos de fiscalização, de outro lado, em que estão compreendidas as auditorias, representações, denúncias, levantamentos, inspeções, acompanhamentos e monitoramentos, cabe primeiramente ao Tribunal de Contas, por meio de seu corpo técnico instrutivo, demonstrar as irregularidades apontadas na fiscalização mediante evidências e fatos que sustentem a sua conclusão.

Aos responsáveis e aos interessados, por sua vez, compete demonstrar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Estado em obter ressarcimento ou punir em função dos apontamentos deduzidos pela respectiva unidade técnica do Tribunal em sua fiscalização. Há, portanto, a atribuição de ônus probatório tanto à equipe técnica do órgão que conduz a instrução como para o responsável ou interessado.

A distribuição do ônus probatório nos processos de fiscalização parece-nos similar à clássica disciplina geral existente no processo civil voltada ao autor e ao réu em que ao primeiro incumbe fazer prova quanto ao fato constitutivo de seu direito; e, ao segundo, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. É o que se denominou chamar de distribuição fixa ou estática do ônus da prova, tendo em vista que a legislação desde logo afirma, a priori e abstratamente, a quem incumbe provar os fatos em discussão.

Ocorre que o Código de Processo Civil/2015, além de adotar a teoria estática do ônus da prova, inovou ao consagrar também a teoria dinâmica do ônus da prova1. Isso quer dizer, a teor do que dispõe o seu art. 373, §§1º e 2º, que o juiz pode inverter a obrigação tradicional de produção probatória, seja por força de lei, seja diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo.

A regra permite ao magistrado, a partir da análise do caso concreto, avaliar quem está em melhores condições de produzir a prova, distribuindo o respectivo ônus entre as partes de forma diversa da prevista em lei. O juiz deve se atentar à extrema dificuldade ou impossibilidade que a parte, a quem incumbiria originariamente o ônus, teria para fazer a prova de determinado fato ou à maior facilidade que uma das partes possui para fazer prova do mesmo fato2.

Diante desse dispositivo, exsurge a possibilidade de o Tribunal de Contas, fazendo as devidas adaptações3, redistribuir o ônus probatório em casos nos quais, por suas particularidades, seja impossível ou muito dificultosa a comprovação de que houve a boa e regular utilização do recurso público. Sempre que as condições materiais e processuais se fizerem presentes, a Corte de Contas pode (e, pensando em processo justo, deve4) dinamizar o ônus da prova, a fim de tutelar adequadamente os interesses em jogo.

A aplicação da dinamização do ônus da prova pressupõe estarem presentes as suas condicionantes. Dito de outro modo, o Tribunal de Contas deve primeiramente verificar a inadequação de se aplicar a regra prevalecente acerca da obrigação de se produzir determinada prova. Se a regra diz que incumbe ao responsável ou interessado, em um processo de fiscalização, provar fatos que afastem a imputação de ato irregular atribuído pelo corpo instrutivo do Tribunal, o seu afastamento somente pode ocorrer em situações nas quais tal incumbência não se mostra razoável.

O caso concreto, muitas vezes, pode não estar harmonizado com a regra geral referente ao ônus probatório. Em razão de suas especificidades ou estando-se diante de situação anormal, inexiste aderência do caso com a razão motivadora da regra. Nestas hipóteses, o princípio da razoabilidade orienta a sua inaplicação.

Nesse sentido, o art. 373, §1º, do Código de Processo Civil/2015, estabeleceu parâmetros a serem considerados para que se excepcione a regra geral, isto é, para que se modifique a atribuição do ônus da prova quando a regra não se mostrar razoável. São quatro as hipóteses: (i) nos casos previstos em lei; (ii) diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade da parte cumprir o encargo; (iii) diante de peculiaridades da causa relacionadas à excessiva dificuldade de cumprir o encargo; (iv) diante de peculiaridades da causa relacionadas à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário. Em todos os casos a decisão deve ser motivada.

Observe-se que o Tribunal de Contas já fez uso do disposto no artigo 373, do Código de Processo Civil/2015. O caso envolvia suposto sobrepreço apurado em obra pública, já em fase de tomada de contas especial. Os responsáveis foram instados a se manifestar sobre as irregularidades constatadas somente treze anos após a ocorrência dos fatos, o que dificultou a apresentação de provas da economicidade dos preços contratados. Por tal circunstância, ao apreciar recurso interposto pelos responsáveis contra a decisão de mérito que lhes havia imputado débito, o Tribunal entendeu existir sérias dúvidas sobre a existência ou não de prática de preços acima do mercado, bem como não ser possível assegurar a exatidão do dano imposto aos responsáveis.

Considerando ainda a própria dificuldade ao exercício do contraditório e da ampla defesa pelo transcurso de tempo desde a ocorrência dos fatos, o Plenário da Corte de Contas entendeu por bem arquivar o feito por falta de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo. Confira-se o enunciado do referido julgado:

A distribuição do ônus probatório nos processos de fiscalização do TCU segue a disciplina do art. 373 da Lei 13.105/2015 (CPC), aplicada às peculiaridades da atividade de controle externo, competindo: a) à unidade técnica do Tribunal demonstrar os fatos apurados nas fiscalizações, mediante a juntada das evidências que os suportam; b) aos órgãos fiscalizados e aos terceiros interessados provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Estado de obter ressarcimento e/ou punir a prática de ato ilegal, ilegítimo e antieconômico que lhes fora atribuída pelo corpo instrutivo do Tribunal5.

Ao reconhecer a dificuldade dos responsáveis na apresentação de provas da economicidade dos preços contratados e afastar tal ônus por conta do longo período decorrido entre a ocorrência dos fatos e a citação, o Tribunal de Contas aplicou, ainda que sem menção expressa, a teoria dinâmica do ônus da prova, consubstanciada no §1º, do art. 373, do CPC, pelo qual “diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo (…), poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso”.

A situação descrita no caso apreciado pelo TCU não é incomum. Por vezes, a intimação do responsável ou do interessado para se manifestar a respeito de determinado ato imputado como irregular se dá após longo transcurso de tempo da sua ocorrência. Como consequência, a produção de provas em seu favor pode se tornar árdua ou mesmo inviável. A distância dos fatos prejudica a memória dos acontecimentos e das justificativas que envolveram a situação questionada, além de comprometer a reunião de informações e documentos necessários ao exercício pleno do contraditório.

No mais das vezes, o responsável já mudou de função, de órgão ou mesmo já se afastou do serviço público, limitando o seu acesso às informações que necessitará prestar. Isso sem considerar a possibilidade de ter havido descarte ou extravio de documentos relevantes para a demonstração da boa e regular aplicação dos recursos.

Enfim, todas essas situações, e muitas outras que podem advir de um longo decurso temporal entre o ato questionado e a intimação, dificultam sobremaneira ou impossibilitam a realização da prova, não sendo razoável que o respectivo encargo de provar a inocorrência de irregularidades recaia sobre o responsável ou o interessado.

Em casos como esse, a aplicação da carga dinâmica do ônus probatório se mostra adequada seja para atribuir exclusivamente ao corpo instrutivo do Tribunal de Contas o encargo de provar, de modo incontroverso, os fatos constitutivos da irregularidade, seja para concluir que, em função da extrema dificuldade ou inviabilidade da produção probatória em favor do responsável ou interessado, o exame da matéria restou inconclusivo, conduzindo à extinção do processo.

Vale destacar que a prova dos fatos constitutivos da irregularidade somente pode ser tida como incontroversa se, projetando-se o cenário em que as condições de o responsável ou interessado realizar contraprova fossem possíveis, ainda assim inexistiria chance de se afastar a impropriedade detectada. Dito de outro modo, não pode haver dúvida de que o ato irregular ocorreu, e mesmo que se produzisse determinada contraprova que se mostra inviável ou dificultosa na ocasião, esta não seria suficiente para elidir as respectivas consequências da constatação. Havendo dúvida, entretanto, a solução deve ser a extinção do processo, diante da impossibilidade de se ter um exame preciso e completo da matéria.

Outra situação hipotética em que a distribuição dinâmica da prova pode se mostrar recomendável diz respeito à comprovação de fatos negativos (ex.: não realizei determinado ato; não estive com aquela pessoa). Imagine-se denúncia apresentada ao Tribunal de Contas dando conta da ocorrência de fraude em determinada licitação.

A denúncia narra a ocorrência de conluio entre licitantes, mediante combinação de lances entre o representante da empresa A e o representante da empresa B. Suponha-se que a denúncia seja inverídica e, ao contrário de sua narrativa, os dois representantes nunca mantiveram contato. Por se tratar de fato negativo e indefinido, é impossível ou excessivamente difícil ao representante da empresa A provar que nunca teve contato com o representante da empresa B. Em um caso como esse, o ônus da comprovação deve caber ao denunciante ou ao corpo instrutivo do Tribunal de Contas (caso este, ao receber a denúncia, verifique que a mesma preencha os requisitos de admissibilidade). E se não lograrem êxito em produzir tal prova, a denúncia deve ser rejeitada.

Pode-se concluir que a possibilidade de flexibilização do ônus da prova nos processos administrativos do Tribunal de Contas, sempre que o caso concreto assim exigir, por conta de suas particularidades, tem o condão de tornar o processo mais justo e efetivo, evitando-se desigualdades. Representa, por isso, importante instrumento de que o órgão julgador e os interessados podem se valer com vistas à garantia da isonomia processual.

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1 Sobre as diferenças entre distribuição estática e dinâmica do ônus probatório, confira-se: “O atual CPC inova ao prever, de forma expressa, a possibilidade de dinamização do ônus da prova. Anteriormente, havia tão somente a previsão da inversão do ônus da prova no art. 6º, VIII, do CDC, o qual era apenas uma via de mão única de facilitação probatória para um grupo restrito de sujeitos e demandas. Na distribuição estática do ônus da prova, cada uma das partes sabe, de antemão, sobre quais espécies de fatos sua atividade probatória deve recair, como também sobre quem recai o risco de não prová-los. A distribuição dinâmica do ônus da prova, por sua vez, significa que o encargo probatório será distribuído tendo em vista as condições probatórias das partes litigantes, conforme o caso concreto. Por conseguinte, dinamizar significa a possibilidade de alterar o ônus estático previsto previamente em lei consoante o direito material e as especificidades do caso. Trata-se de uma forma de efetivar os princípios da cooperação, do acesso à justiça e da adequação, permitindo que os ônus probatórios possam ser modificados em concreto, de forma a não gerar dificuldades excessivas na produção de provas”. (MACÊDO, Lucas Buril; PEIXOTO, Ravi, art. 373. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (Orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 558.

2 WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; et al. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 891-892.

3 Nesse sentido, Aldem Johnston Barbosa Araújo, ao defender a aplicação da dinamização do ônus da prova nos processos administrativos, aponta o seguinte: “a aplicação da carga dinâmica da prova em tais feitos deverá ser submetida a inevitáveis adaptações, ante a constatação de que: primeiro, não há partes no processo administrativo (há interessado); segundo, não há um juiz isento e equidistante e; terceiro nem sempre há lide”. (Processo administrativo e o novo CPC: impactos da aplicação supletiva e subsidiária. Curitiba: Juruá, 2017, p; 138).

4 Nesse sentido: “presentes os requisitos, há dever-poder do juiz da distribuição dinâmica, sob pena de violação da norma” (FERREIRA, William Santos. Art. 373. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. WAMBIER, Teresa Arruda et al. (Coords.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1411). “A prescrição legal trabalhou como ‘poderá’, no que nos causa estranheza, posto que avalizamos como dever, assim como tivemos a inclusão de várias outras passagens do NCPC de deveres do magistrado. A interpretação judicial não pode ser outra, pois a ratio da norma é o procedimento probatório e, caso o juiz não determine, restará inviabilizada a prova e qual será o papel da teoria da decisão nesse feito?” (GÓES, Gisele Santos Fernandes. Art. 373. In: ALVIM, Angélica Arruda; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo Arruda; LEITE, George Salomão (Coords.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 492).

5 Cf. Acórdão 1522/2016-Plenário, j. 15/06/2016, Rel. Benjamin Zymler.

GIUSEPPE GIAMUNDO NETO – Especialista em direito público (infraestrutura, controle e regulação). Mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do Giamundo Neto Advogados.

*Para citar este artigo: GIAMUNDO NETO, Giuseppe. Quem não é parte pode acessar processo no Tribunal de Contas? Portal Jota. 01/10/2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-possibilidade-de-dinamizacao-do-onus-probatorio-no-tribunal-de-contas-01102019. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Quem não é parte pode acessar processo em trâmite no Tribunal de Contas?

GIUSEPPE GIAMUNDO NETO – Especialista em direito público (infraestrutura, controle e regulação). Mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do Giamundo Neto Advogados.

*Para citar este artigo: GIAMUNDO NETO, Giuseppe. Quem não é parte pode acessar processo no Tribunal de Contas? Portal Jota. 17/09/2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quem-nao-e-parte-pode-acessar-processo-em-tramite-no-tribunal-de-contas-15102019. Acesso em: dd/mm/aaaa.

A Constituição Federal adotou o princípio da máxima publicidade estatal, tratando-o como direito fundamental do cidadão. Assegura-se a todos, à luz do artigo 5º, XXXIII, o “direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei”. E a autoridade ou agente que não viabilizar tal acesso pode ser responsabilizada. Tal cominação excepciona apenas as informações “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

De pronto, é possível notar a amplitude que o Texto Constitucional conferiu ao direito do cidadão de acesso a informações. Qualquer informação detida por órgão público pode ser acessada, desde que de interesse coletivo ou de interesse particular daquele que a solicita. De outro lado, também a concepção de órgão público é muito vasta, englobando qualquer unidade do Estado que possua um feixe de atribuições1. Resguardam-se, apenas, as informações que sejam sigilosas por questões de segurança estatal e da sociedade.

Outros dispositivos constantes do Texto Constitucional realçam o dever de publicidade que deve guiar a atividade do Estado. São exemplos o artigo 5º, LXXII, que previu o habeas data para assegurar “o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”, o artigo 216, §2º, que dispõe caber à administração pública “a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”, e o artigo 5º, XXXIV, “b”, que garante a todos, independentemente do pagamento de taxas, “a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”.

O artigo 5º, da Constituição, especifica em seu inciso LX a publicidade que deve existir nos atos processuais. Segundo tal dispositivo, “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Interpretando-se a contrario sensu, extrai-se que os atos processuais sempre serão públicos. Somente deixarão de ser caso assim a lei o determine.

E a lei, no caso, para fins de restrição da publicidade, deve circunscrever-se à proteção da intimidade ou do interesse social levando em conta os danos que a revelação do ato processual potencialmente pode causar às partes envolvidas, a terceiros ou à coletividade.

Outro aspecto a ser observado é que a Constituição Federal, ao estabelecer a publicidade dos atos processuais sem fazer qualquer distinção, encarece o dever de observância de tal princípio em qualquer forma de processo, seja ele judicial ou administrativo. Nos processos judiciais, em acréscimo, dispõe o artigo 93, IX, da CF, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

E para os processos administrativos, o dever é reforçado por força do disposto no caput do artigo 37, da CF, que exige obediência ao princípio da publicidade, dentre outros, para toda e qualquer atividade administrativa dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Embora os primeiros destinatários do conhecimento dos atos processuais sejam as partes e seus advogados, aos quais não se pode opor qualquer restrição, até mesmo para viabilizar o exercício da ampla defesa e do contraditório2, a possibilidade de acesso aos atos processuais transcende o interesse das partes, para se posicionar como direito de toda a sociedade.

Desse modo, também terceiros, e não apenas as partes do processo administrativo, podem ter acesso aos autos, inclusive mediante consulta em secretaria e extração de cópias, tendo em vista as garantias dispostas no artigo 5º, incisos XXXIII e LX, da Constituição Federal. A restrição à consulta dos atos processuais por terceiros somente terá lugar se o interesse social ou o direito à intimidade daqueles que compõem o processo estiverem em jogo.

A publicidade dos atos processuais, portanto, é a regra. Somente nas hipóteses em que se justificar restrições por conta dos interesses em discussão é que o sigilo deve ser decretado.

Nesse sentido, a Lei n. 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), ao regular o artigo 5º, XXXIII, da Constituição Federal, viabilizou a ampliação do controle social da gestão pública por meio do acesso a informações e documentos produzidos, gerenciados e guardados pelo Estado.

Referida lei previu a possibilidade de restrição parcial da divulgação quando se fizer necessário o resguardo de informações e documentos comprometedores da segurança da sociedade ou do Estado (art. 23), além de não excluir as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça, nem as hipóteses de segredo industrial (art. 22). Em todos os casos de informação sigilosa, contudo, assegura-se o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo.

No que toca aos órgãos de controle externo e interno, o artigo 7º, VII, b, da Lei n. 12.527/2011, garantiu o acesso ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas por eles realizadas, incluindo prestações de contas relativas a exercícios anteriores.

Resta saber, diante de tal dispositivo, bem como do §3º do mencionado artigo 7º (“o direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo”) se é possível que terceiro obtenha vista de processo administrativo em trâmite no Tribunal de Contas antes da apreciação de seu mérito.

Há julgados do Tribunal de Contas da União no sentido de que tal faculdade somente é exercível após o resultado do processo de controle externo. Assim, apenas a partir da prolação de ato decisório de mérito nasceria o direito ao acesso à informação3.

De outro lado, em contraste, merece menção o Acórdão 9062/2017-Primeira Câmara4, sob a relatoria do Min. Bruno Dantas, em que se admitiu que o acesso aos autos de processo não constitui prerrogativa exclusiva das partes, “mas uma garantia do cidadão, conforme estabelece a recente Lei 12.527/2011, que regula o acesso a informações previsto nos artigos 5º, inciso XXXIII, e 37, § 3º, inciso II, da CF/1988”. Confira-se:

(…) 21.A supracitada Lei de Acesso à Informação (LAI) orienta-se de acordo com um conjunto de padrões estabelecidos com base nos melhores critérios e práticas internacionais, dentre os quais é possível destacar os seguintes princípios e diretrizes: divulgação máxima, não exigência de motivação, limitação de exceções e transparência ativa.

22.Pertinente registrar que o direito de acesso à informação não se confunde com o direito de petição, este sim restrito às partes, pois não se admite a manifestação processual de terceiros sem interesse jurídico, sendo imprescindível a devida habilitação nos autos.

23.Em seu bojo, a LAI restringiu o acesso apenas às informações sigilosas (em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado) e às informações pessoais (relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem da pessoa natural), além de expressamente não excluir as demais hipóteses legais de sigilo (como, por exemplo, o das denúncias formuladas ao TCU, com base no art. 55 da Lei 8.443/1992) e de segredos de justiça ou industrial.

24.Ou seja, quer me parecer que o filtro que limita a visibilidade do processo é o grau de confidencialidade a ele aplicado, e não a condição de ser parte, sob o risco de que seja indevidamente restringido o acesso a processos do Tribunal, tolhendo o direito fundamental que a LAI pretende salvaguardar. Enfim, vejo não só como possível, mas desejável o acesso pela sociedade a todas as informações produzidas ou sob guarda do poder público.

25.No presente caso, noto que o processo não é classificado como sigiloso. E, mesmo nos casos em que eventualmente haja alguma peça sigilosa dentro de processo não sigiloso, aplica-se o disposto no art. 27, § 2º, da Resolução-TCU 249/2012: Quando se tratar de informação parcialmente sigilosa, é assegurado o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo.

26.Assim, considerando as garantias de acesso à informação previstas nos arts. 5º, incisos XXXIII e LX, e 37, § 3º, inciso II, da CF/1988, na Lei 12.527/2011 e na Resolução-TCU 249/2012, julgo que devem ser deferidos os pedidos de cópia formulados.

A posição assumida pelo TCU no julgado acima transcrito nos parece a que melhor se adequa ao que determina a Constituição Federal quanto ao acesso à informação e à publicidade dos atos processuais.

Somente nos casos em que se caracterizar o dever de sigilo é que a limitação deve ocorrer. A interpretação restritiva da Lei de Acesso à Informação que resulta na impossibilidade de se obter vista de processo administrativo no Tribunal de Contas antes de sua conclusão não se coaduna com as diretrizes fixadas no art. 5º, incisos XXXIII e LX, do Texto Constitucional.

Os dispositivos constitucionais mencionados somente permitem restrição à informação ou ato processual quando a sua publicização puder comprometer interesse social ou o direito à intimidade, ou quando o sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Qualquer limitação para além dessas hipóteses, ainda que implementada por lei, deve ser tida como inconstitucional.

Observe-se que a LOTCU não faz qualquer restrição à concessão de vista a terceiros de processo administrativo no Tribunal de Contas. Somente o faz ao tratar dos processos originados a partir de denúncias. Confere-se caráter sigiloso a tais denúncias até que haja decisão definitiva por parte da Corte (art. 55). O conteúdo da denúncia, portanto, assim como os atos do processo, somente são passíveis de consulta por terceiros após a conclusão do processo, mediante decisão final.

O objetivo da LOTCU ao impedir o acesso a processo de denúncia antes da apreciação de seu mérito pelo Tribunal de Contas é nobre e louvável. Quer-se evitar a exposição do denunciado, bem como proteger a sua imagem antes da confirmação dos fatos que lhe são imputáveis. Estaria o denunciado – invariavelmente um servidor público –, sujeito, por exemplo, a explorações políticas e midiáticas decorrentes da existência da denúncia, além de potencialmente ter a sua reputação abalada injustamente.

Ainda assim, importa observar que a denúncia nem sempre tratará de situações em que o denunciante imputa a determinado agente público a prática de irregularidades que colocam em risco a sua imagem e reputação, hipóteses em que o sigilo é justificável. É o caso, por exemplo, de denúncia ou representação que envolva atos da Administração praticados no curso de licitação: um licitante ou mesmo um cidadão, entendendo que determinado edital licitatório está eivado de vícios, denuncia tal fato ao Tribunal de Contas para que este tome conhecimento e examine a regularidade do certame.

Nessa hipótese, bastante corriqueira, o acesso à denúncia por terceiros, bem como de eventual manifestação produzida por equipe de auditoria da Corte de Contas antes do julgamento do assunto, em nada compromete direitos e garantias individuais alheias. O procedimento licitatório e os respectivos documentos e informações produzidos em seu curso já eram públicos antes da denúncia, inclusive eventuais impugnações e recursos apresentados por interessados. Não é lógico, portanto, além de contrário ao disposto no art. 5º, incisos XXXIII e LX, da Constituição Federal, proibir a concessão vista de autos que têm por objeto tal matéria.

No mesmo sentido são as auditorias que envolvem a execução de contratos públicos. A fiscalização do Tribunal de Contas examina a legalidade, legitimidade e economicidade de tais contratações. Nada do que se discute, em regra, reveste-se de caráter sigiloso. Para além da Lei de Acesso à Informação, a própria Lei n. 8.666/93, que rege os contratos administrativos, garante a qualquer cidadão o acesso aos quantitativos das obras e preços unitários de determinada obra executada (art. 7º, §8º). Salvo se houver qualquer situação nos autos que possa comprometer direitos individuais alheios ou quando se verificar as hipóteses de sigilo, não há justificativa para negativa de acesso.

Observe-se que as mesmas discussões existentes em um processo no Tribunal de Contas podem ser travadas no Poder Judiciário, sem que se imponha neste âmbito qualquer restrição à publicidade. Supondo-se que o denunciante do vício editalício tenha, em paralelo, também ingressado com ação judicial para afastar as irregularidades verificadas (v.g. ação popular ou mandado de segurança), o respectivo processo em trâmite no Poder Judiciário, contendo os mesmos documentos, matéria e conteúdo do processo em andamento no Tribunal de Contas, será de livre acesso, desde o seu ajuizamento, por qualquer cidadão. De outro lado, o mesmo não ocorre com o processo administrativo, caso prevaleça o entendimento de que a publicização somente se dá por ocasião de seu término, o que não se mostraria justificável.

O Código de Processo Civil/2015, vale registrar, estabelece como regra que “os atos processuais são públicos”, exceto os que tramitam em segredo de justiça.

Dentre estes, destacam-se, pela compatibilidade com os processos administrativos do Tribunal de Contas, aqueles em que o exija o interesse público ou social e os em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade (art. 189, I e III). Nesses casos, o direito de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e aos seus procuradores (art. 189, §1º).

O Tribunal de Contas, portanto, mesmo quando estiver tratando de processo de denúncia – hipótese em que há regra específica da LOTCU limitando o acesso do processo até o seu julgamento definitivo (art. 55) –, ou de qualquer outro tipo de processo, deve examinar o caso concreto para verificar se o sigilo se justifica.

Caso não o faça, negando o acesso indistintamente, como se verifica dos julgados e do normativo interno que estendem tal regra a todos os processos em curso no Tribunal – não apenas para as denúncias –, estará ferindo garantia alçada à categoria de direito fundamental pela Constituição Federal (XXXIII e LX).

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1 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 650.

2 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil – volume I (arts. 1º a 69): das normas processuais civis e da função jurisdicional / coordenação de José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca. – São Paulo: Saraiva, 2018, p. 126.

3 Cf. Acórdão 1219/2013-Plenário, com o seguinte enunciado: “Apenas com a prolação de ato decisório de mérito pelo Tribunal de Contas da União nasce o direito ao acesso à informação, consagrado na Lei de Acesso à Informação. Antes desse ato de mérito, as normas aplicáveis aos referidos processos de controle externo em tramitação no TCU são a sua Lei Orgânica e o seu Regimento Interno.” (Rel. Walton Alencar Rodrigues, j. em 22/05/2013).

4 J. em 26/09/2017.