por Camillo Giamundo e Leonardo Muradian Cundari

Com a alteração da Lei de Improbidade Administrativa (a partir da Lei n° 14.230/2021), alguns dispositivos, características e institutos próprios deste diploma legal foram atualizados; outros, no entanto, se mantiveram essencialmente os mesmos.

Uma das continuidades face à antiga redação da Lei n° 8.249/1992 é a ausência de clara e expressa definição legal de improbidade administrativa. A lei, em detrimento de caracterizá-la de maneira geral e abstrata ou através de algum conceito-chave, define que o ato de improbidade é constituído a partir de três tipos descritivos: (a) o enriquecimento ilícito do agente público; (b) a lesão ao erário; e (c) a violação dos princípios da Administração Pública.

A ausência de uma definição constitucional e legal expressa de improbidade fez com que a jurisprudência e a doutrina se debruçassem sobre o fenômeno de maneira a muni-lo de requisitos e pressupostos mais sólidos e complexos.

O professor José Roberto Pimenta de Oliveira, nesse sentido, ensina que a massa de valores que modelam a tipificação das condutas tidas como ímprobas se extrai de uma interpretação sistemática da Constituição Federal (OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 159), sendo certo afirmar que sua definição está intimamente ligada ao conceito e aplicação do princípio da moralidade.

É desse entendimento que José Afonso da Silva define que probidade administrativa é uma forma de moralidade, que consiste no dever de o funcionário público servir a Administração com honestidade, sem aproveitar, para si ou para quem queira favorecer, no exercício de suas funções, os poderes ou facilidades delas decorrentes (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 669).

Assim, extrai-se que improbidade administrativa é a prática de ato administrativo ilegal, qualificado pela imoralidade, desonestidade e má-fé do agente público no desempenho de sua função pública e do que dele se espera.

Trazendo o conceito e definição para a prática do nosso ordenamento jurídico, a improbidade administrativa — positivada no artigo 37, §4º, da Constituição de 1988 como um reflexo da preocupação do legislador constituinte para que o ordenamento possuísse respaldo constitucional para fornecer uma resposta à altura aos atos que atentassem contra a moralidade administrativa — veio a ser regulamentada pela Lei nº 8.429/92, que arrola não apenas seu aspecto de direito material para a caracterização de tal ato, mas também define normas de direito processual, com incidência subsidiária do Código de Processo Civil.

Em linhas gerais, tem-se que a lei que rege e dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa traz uma série de premissas necessárias para a caracterização do ato ilícito, tanto de natureza material como processual.

Compreendida a relevância constitucional da repreensão ao ato de improbidade e a especialidade do rito processual que, ao final, lhe configure como tal, há que se firmar que não há, nem pode haver, declaração ou imputação de ato de improbidade sem o prévio devido processo legal, na forma prevista na Lei, por meio da ação de improbidade, ou, como também é aceito, sob a forma da ação civil pública por ato de improbidade [1].

Significa dizer que, na prática, as pessoas legitimadas a propor a ação de improbidade administrativa e/ou a ação de ressarcimento ao erário não detêm a competência e poder de pressupor que o cometimento de determinado ato seja caracterizável como improbidade administrativa.

Considerando os prazos prescricionais previstos na lei, imagine-se o cenário em que se verifica que a pretensão punitiva do ato ímprobo esteja prescrita, porém o ente público interessado e/ou lesado demonstra intenção em buscar a tutela jurisdicional para o ressarcimento do que entende por dano ao erário.

Nessa hipótese, a escolha da propositura de ação civil pública ou de ressarcimento sem que se tenha observado os ditames processuais previstos na Lei de Improbidade levam à conclusão de que será inepta tal pretensão, posto que há a ausência de caracterização e declaração do ato como improbidade administrativa, capaz de justificar a pretensão ressarcitória do interessado e sem o qual decorreria a impossibilidade jurídica do pedido exemplificado acima.

Em outras palavras: o ressarcimento ao erário embasado em ato de improbidade administrativa pressupõe, obrigatoriamente, a declaração do Juízo competente, observadas as regras de direito material e processual previstas na Lei de Improbidade. Não cabe, portanto, ao ente legitimado seguir com o ressarcimento sem antes observar essa garantia constitucional e legal.

Nesse sentido, o STJ já entendia, com relação à redação da Lei n° 8.249/1992, que “se mostra lícita a cumulação de pedidos de natureza condenatória, declaratória e constitutiva nesta ação (civil pública), quando sustentada nas disposições da Lei nº 8.429/1992” (STJ, REsp 1.660.381/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 26/11/2018). Também nesse sentido: STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 437.764/SP, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 12/03/2018.

Para esclarecer a ideia exposta acima, toma-se o mesmo exemplo do ressarcimento ao erário: o STF pacificou o entendimento, cristalizado no Tema nº 897, de que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na lei de improbidade administrativa”.

Tal imprescritibilidade, além de exigir a caracterização do elemento subjetivo do dolo — que, com a nova redação da Lei de Improbidade, passou a ser requisito básico e obrigatório para imputação de toda e qualquer punição decorrente deste ato — requer, para tanto, a comprovação de fato típico enquadrado como ato de improbidade administrativa. Sem esta declaração judicial transitada em julgado, a pretensão ressarcitória terá de se fundamentar em outros pilares que não o ato ímprobo, perdendo sua natureza imprescritível.

Por analogia, importante apontar que o STF, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório e ao acesso à Justiça, definiu, no tema 899, que “é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”.

Ou seja, sem entrar nas peculiaridades dos processos e regras procedimentais dos Tribunais de Contas, é possível afirmar que deve haver, sobretudo, imputação específica de uma das condutas descritas na Lei como ímprobas, em que tenham sido observadas as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, conforme o rito previsto pela Lei de Improbidade, para que se possibilite essa pretensão na forma deste diploma legal.

Não compete a tais órgãos processar e julgar um ato de improbidade per se, mas, sim, fiscalizar as contas públicas, de maneira que é necessário, para fundamentar a imprescritibilidade, que se provoque o Poder Judiciário acerca do cometimento de tal ato, e, ao fim e ao cabo, respeitado o contraditório e se procedente o pedido, a declaração do ato como ímprobo, com a consequente condenação cabível, por meio da via adequada.

No tocante ao ressarcimento ao erário, a análise de cada caso concreto ditará se é possível propor ação de ressarcimento em face do cometimento de algum ato ilícito que enseje a restituição aos cofres públicos. Rememora-se que nem toda ilicitude será, necessariamente, um ato de improbidade administrativa, relacionando-se apenas enquanto gênero e espécie, respectivamente.

Todavia, a imputação de ato de improbidade administrativa, mesmo que prescritas as outras sanções, traz consigo uma série de requisitos muito mais severos ao agente público e aos terceiros (particulares, empresas privadas etc.) que concorreram para a prática do ato, do que mera má gestão, ineficiência ou negligência — o que se enquadraria na modalidade culposa, hoje considerado fato atípico em razão da alteração normativa de 2021. Nessa esteira, e como bem apontado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal:

“Não se trata de mera ação de ressarcimento ou indenizatória movida com base em responsabilidade objetiva ou subjetiva pela prática de outro ato ilícito que não esteja tipificado como ato de improbidade administrativa; pelo contrário, independentemente da prescrição das demais sanções, o autor da ação estará imputando ao réu a prática de atos de improbidade administrativa, e consequentemente deverá descrevê-los na inicial, apontando e comprovando a prática de conduta típica específica, sob pena de grave ferimento à ampla defesa, uma vez que a imprescritibilidade do dano perseguida em juízo decorre diretamente da imputação da prática de um ato de improbidade administrativa.” [2]

Por isso, em respeito aos princípios constitucionais basilares e às disposições da Lei de Improbidade, conclui-se ser inviável considerar como ímprobo um ato ilícito sem que antes se tenha permitido aos interessados acusados o exercício de sua defesa nos moldes e limites do procedimento adequado, trazendo o paralelo constitucional da presunção de inocência, garantia do artigo 5º, inciso LVII, até que se prove o contrário e, indo além, até o pronunciamento judicial transitado em julgado, perante o qual, só então, estaria efetivamente configurada a improbidade administrativa, imputada ao agente público e privado com base em um dos atos tipificados nos artigos 9º a 11 da Lei de Improbidade Administrativa.

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NOTAS:

[1] Tema 1.089/STJ: Na ação civil pública por ato de improbidade administrativa é possível o prosseguimento da demanda para pleitear o ressarcimento do dano ao erário, ainda que sejam declaradas prescritas as demais sanções previstas no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa.

[2] MORAES, Alexandre de. A necessidade de ajuizamento ou de prosseguimento de ação civil de improbidade administrativa para fins de ressarcimento ao erário público, mesmo nos casos de prescrição das demais sanções previstas na Lei nº 8.429/1992. In: MARQUES, Mauro Campbell (Coord.). Improbidade administrativa: temas atuais e controvertidos. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 19-37.

 

Artigo originalmente publicado no Consultor Jurídico, em 26.06.2023.