Por Giuseppe Giamundo Neto e Fernanda Leoni

O Tribunal de Contas da União, enquanto órgão sui generis em nosso sistema jurídico, deriva suas competências diretamente do texto constitucional, o que implica reconhecer uma ampla gama de poderes, como bem se extrai do artigo 71, da Constituição, alinhada com atribuições regulamentares limitadas, assegurando tanto a manutenção de competências compatíveis com a sua finalidade como a própria higidez da estrutura constitucional de Poderes instituídos.

Nesse contexto, com certa frequência debate-se a efetiva competência do tribunal para a adoção de medidas que não são extraíveis, de forma direta, do texto constitucional ou mesmo da legislação orgânica do TCU. Durante muitos anos, esse debate ficou restrito às cautelares de retenção de pagamento [1]; posteriormente, às medidas de indisponibilidade de bens de responsáveis [2]; e, agora, à desconsideração da personalidade jurídica.

Limites da desconsideração da personalidade jurídica pelo TCU

Como se sabe, a medida de desconsideração da personalidade jurídica — aqui abreviada por DPJ —, de extrema gravidade em termos de alcance do patrimônio privado, não se encontra entre as muitas atribuições conferidas ao TCU pelo texto constitucional; tampouco tem respaldo em sua Lei Orgânica (Lei Federal nº 8.443/1992) ou Regimento Interno, embora adotada com frequência a partir da aplicação direta do Código Civil.

Sem sequer adentrar a um debate sobre uma possível reserva de jurisdição para o exercício dessa atribuição, bastante defendida pela doutrina [3], com fundamento na interpretação literal do artigo 50 do Código Civil, quando menciona ser atribuição jurisdicional a desconsideração da personalidade jurídica, fato é que o TCU não somente entende deter tal competência [4] como encontra o aval do Supremo Tribunal Federal para o exercício dessa atribuição [5].

Nesse contexto, mais do que discutir as competências do TCU para adoção dessa medida — que, a despeito da posição contrária de grande parte da doutrina [6], com a qual se alinham os autores, é uma realidade hoje respaldada pelo STF —, mostra-se relevante debater os limites dessa atribuição, de modo que o instituto seja tanto efetivo para que a Corte de Contas exerça suas fiscalizações como garantidor dos direitos assegurados às pessoas jurídicas que integrem processos conduzidos pelo órgão.

Visão da doutrina e a posição do TCU

De forma geral, a doutrina brasileira reconhece duas teorias aplicáveis à desconsideração da personalidade jurídica, genericamente denominadas por “teoria maior” e “teoria menor”. Apesar dos diferentes desdobramentos, de modo geral, a diferença entre essas teorias está justamente no nível de intervenção admitido ante a situação concreta. Assim, enquanto a teoria maior exige a comprovação de fraude ou abuso por parte dos sócios para a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, a teoria menor tem por base o mero prejuízo ao credor [7].

A disposição do Código Civil, de que se vale o TCU para a aplicação do instituto, claramente adotou a teoria maior, a qual, pontua a doutrina, tem duas diferentes perspectivas a serem observadas em termos de aplicação. Na formulação subjetiva do instituto, exige-se a prova do uso fraudulento ou abusivo da personalidade jurídica. Já na formulação objetiva, precisa estar presente a demonstração da confusão patrimonial [8].

Desse modo, enquanto ressalva inicial para aprimorar a aplicação do instituto pelo TCU, mostra-se indispensável a apuração e demonstração dos requisitos legais objetivos e subjetivos da medida, sendo certo que essa comprovação deve, inclusive, mudar a lógica dos ônus da prova geralmente observada pelo tribunal que, no julgamento de contas, costuma inverter esse dever argumentativo. No caso da DPJ, ademais, é importante que o tribunal se afaste da concepção geral de que simples indícios de irregularidade são suficientes à prova desses requisitos, que demandam elementos probatórios mais robustos.

Outro aspecto a ser observado na elucidação do cenário que admite o uso da DPJ diz respeito à limitação do atingimento do patrimônio daqueles sócios ou administradores que tenham sido diretamente beneficiados pelo abuso. Essa determinação, extraída da atual redação do artigo 50, do Código Civil, representa uma mudança significativa em relação à responsabilização solidária anteriormente prevista, garantindo maior coerência e justiça ao instituto. Além disso, cuida-se de mais um aspecto a ser observado em termos probatórios por parte do TCU, que deve assegurar a formação de elementos que demonstrem essa vantagem ou benefício.

Requisitos processuais

Além dos pressupostos fáticos relacionados à DPJ, também é importante a garantia de requisitos processuais mínimos, que inclusive permitam que a aferição quanto à existência dos aspectos objetivos e subjetivos acima abordados seja realizada de forma apartada da discussão de mérito do processo, assegurando maior certeza quanto à imposição de medida de tamanha relevância.

É o que, afinal, ocorre nos processos judiciais desde a revisão do Código de Processo Civil em 2015, a partir da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, regulado pelos artigos 133 a 137 do diploma processual. De acordo com o procedimento regulado no CPC, presente requerimento da parte ou do Ministério Público nesse sentido, será instaurada apuração incidente, apta, inclusive, a suspender a apuração principal em determinados casos.

Dada a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil aos processos administrativos, tantas vezes admitida pelo próprio TCU, a aplicação analógica do incidente de desconsideração de personalidade jurídica ou regulamentação similar em normativos internos da corte certamente produziria elementos mais qualificados para a análise que fundamenta a medida.

Considerações finais

Em conclusão, a ausência de previsão legal de atribuição dessa competência ao TCU, e, consequentemente, de limites mais claros à medida, pode trazer riscos não somente de um uso desmedido do instituto, mas desconforme aos próprios preceitos para ele idealizados. Em razão disso, a apuração e demonstração dos requisitos legais objetivos e subjetivos, aliada à garantia de requisitos processuais mínimos, assegura não apenas a eficácia da medida, mas também a proteção dos direitos das partes envolvidas, de forma que a aplicação analógica do incidente de desconsideração de personalidade jurídica ou a regulamentação similar em normativos internos do TCU contribuiria significativamente para uma análise mais qualificada e justa da medida.

 

[1] Debate bastante frequente no Judiciário entre 2010/2015. Posteriormente, o próprio TCU passou a limitar o uso da medida.
[2] Vide, nesse sentido: “Mandado de Segurança. 2. Tribunal de Contas da União. Tomada de contas especial. 3. Dano ao patrimônio da Petrobras. Medida cautelar de indisponibilidade de bens dos responsáveis. 4. Poder geral de cautela reconhecido ao TCU como decorrência de suas atribuições constitucionais. 5. Observância dos requisitos legais para decretação da indisponibilidade de bens. 6. Medida que se impõe pela excepcional gravidade dos fatos apurados. Segurança denegada” (STF, MS 33092, relator ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 24/03/2015).
[3] Sobre o tema, vide: SUNDFELD, Carlos Ari e CÂMARA, Jacintho Silveira Dias de Arruda. Limites da jurisdição dos tribunais de contas sobre particulares. Revista Justiça do Direito. Vol. 33, Nº 02, p. 198-221. Maio/Ago., 2019. p. 215.
[4] Pesquisa de jurisprudência realizada pela ferramenta do TCU demonstra que somente no ano de 2023 cerca de vinte processos envolveram a discussão sobre o tema.
[5] De forma exemplificativa: “(…) É legal e constitucionalmente fundada a desconsideração da pessoa jurídica pelo TCU, de modo a alcançar o patrimônio de pessoas físicas ou jurídicas envolvidas na prática de atos lesivos ao erário público, observados o contraditório e a ampla defesa” (STF, MS 35920 ED, relator ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/2023).
[6] Cf.: “O TCU não tem competência para desconsiderar a personalidade jurídica e estender os efeitos da inidoneidade a terceiros. Além de não ser destinatário da Lei, o TCU não é expressamente indicado como titular desta competência. Competências, ainda mais de poder, não se presumem. O Estado de Direito não admite poderes implícitos para restringir, limitar ou condicionar direitos. Há uma grave falha de o Legislativo não indicar o responsável por tamanha competência – mais um exemplo de poder sem responsabilidade. Mas isso não significa que o TCU a detenha só porque assim supõe” (PALMA, Juliana Bonacorsi. TCU pode desconsiderar personalidade jurídica e estender efeitos da inidoneidade? Jota – Coluna Controle Público. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/tcu-pode-desconsiderar-personalidade-juridica-e-estender-efeitos-da-inidoneidade-29092021. Acesso em 02/04/2024).
[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: Parte Geral. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 158.
[8] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: Direito de empresa. Volume II. São Paulo: Saraiva, 2012,. p. 32.

Publicado no Conjur.