Camillo Giamundo e Brenda Monticelli

A lei 14.133/21 regula novas contratações públicas desde janeiro/24, gerando debates sobre a inexequibilidade de preços, especialmente em obras e serviços de engenharia, conforme o art. 59.

Desde janeiro/24 os novos processos de contratações públicas no país são regulados exclusivamente pela nova lei de licitações e contratos (lei 14.133/21). Naturalmente, a implementação dessa nova lei gerou dúvidas sobre como suas disposições deveriam ser aplicadas na prática dos processos licitatórios, e em razão desses questionamentos, cenários até então nebulosos têm sido discutidos nas cortes brasileiras competentes com o objetivo de consolidar a aplicação da nova norma.

Foi a partir da discussão de um desses temas que o TCU enfrentou, recentemente, a questão da inexequibilidade de preços no âmbito da Lei 14.133/2021, reafirmando sua jurisprudência já consolidada durante a vigência da lei 8.666/93.

Para entender essa questão e o posicionamento do TCU, é essencial compreender que a inexequibilidade de preços ocorre em situações em que a oferta de um licitante é considerada inviável para a execução do contrato. Assim, uma proposta é considerada inexequível quando os valores ofertados são tão baixos que não permitem a realização adequada do serviço ou a entrega do produto conforme os requisitos e padrões exigidos pela Administração Pública.

A redação do art. 59, §4º, da nova lei de licitações é expressa em descrever a inexequibilidade, no caso de obras e serviços de engenharia, como sendo “as propostas cujos valores forem inferiores a 75% do valor orçado pela Administração”. O mesmo dispositivo permite à Administração contratante a realização de diligência, para confirmação da exequibilidade do valor proposto, ou exigir a comprovação por parte dos licitantes (§2º).

Identificar preços inexequíveis é de suma importância para garantir que os contratos sejam cumpridos com qualidade e para que não ocorram problemas como a interrupção do serviço, a entrega de produtos de baixa qualidade ou a necessidade de aditivos contratuais que aumentem os custos originalmente previstos e impactem na economia que a proposta original deveria refletir.

Sobre essa matéria, a Corte de Contas da União já vinha mantendo entendimento consolidado.

Aprovada durante a vigência da antiga lei, a súmula 262, ao analisar o art. 48, inciso II, §1º, alíneas “a” e “b” da 8.666/93, estabeleceu a inexequibilidade relativa. Segundo o enunciado, fixado a partir do Acórdão 3.240/10, a Administração deveria dar ao licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de sua proposta, afastando a possibilidade de rejeição sumária de propostas economicamente vantajosas para a Administração Pública.

Esperava-se que esse entendimento também fosse aplicado à legislação atual, uma vez que, embora o art. 59, §4º da lei 14.133/21 preveja um critério objetivo para avaliar a inexequibilidade das propostas referentes a obras e serviços de engenharia, a nova legislação não se limita a esse critério. Como dito, o §2º do mencionado artigo possibilita que a Administração realize diligências ou solicite aos licitantes a demonstração de que os preços ofertados estão de acordo com as condições necessárias para a plena execução do objeto contratual.

No entanto, contrariando as expectativas de manutenção do entendimento anterior, o TCU, em seu acórdão 2.198/23 – Plenário, considerou os termos do art. 59, §4º da lei 14.133/21 que dispõem que “no caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração” e a previsão do inciso III, do mesmo artigo, segundo a qual “serão desclassificadas as propostas que apresentarem preços inexequíveis”, concluindo que não haveria necessidade de realizar diligências para aferir a inexequibilidade de preços, pois uma proposta abaixo do percentual de 75% já seria automaticamente considerada inexequível pela própria lei, devendo, portanto, ser desclassificada.

Apesar de, nesse primeiro momento, o entendimento ter sido trilhado para que o art. 59, inciso III, c/c §4º, da nova lei de licitações fosse interpretado de maneira literal, instituindo uma presunção absoluta de inexequibilidade de preços nos certames destinados à contratação de obras e serviços de engenharia, tal posicionamento foi logo corrigido.

Nesse sentido, a publicação institucional do Tribunal – “Licitações e Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU”, em sua quinta edição, destacou que o entendimento do acórdão 2.198/23 – Plenário era isolado “sendo aconselhável aguardar novas decisões para ter uma compreensão mais clara e definitiva sobre a aplicação desse dispositivo legal a partir de casos concretos.”

Além disso, ainda na quinta edição de Orientações e Jurisprudência, o TCU apresentou entendimento sobre a ausência de obstáculos à aplicação da súmula 262 do Tribunal à lei 14.133/21. Isso se deve ao fato de que, como visto, o art. 59, inciso IV, c/c § 2º, da referida lei, prevê expressamente que a exequibilidade pode ser demonstrada pelo licitante.

Considerando os entendimentos insculpidos na publicação institucional, bem como o entendimento da maior parte da jurisprudência e da súmula 262 do TCU, foi proferido o acórdão 465/24 – Plenário. Esse acórdão determinou, de forma acertada e em linhas gerais, que o parâmetro de inexequibilidade de propostas estabelecido no art. 59, §4º, da lei 14.133/21 deve ser interpretado de maneira sistemática e em consonância com o §2º. Ocorreu, portanto, a manutenção do entendimento da súmula 262, uma vez que a decisão concluiu pela presunção relativa de inexequibilidade de preços, de modo que cabe à Administração dar ao licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de sua proposta.

O acórdão se mostrou essencial, na medida em que, além de resolver a controvérsia anteriormente levantada, esclarece que, mesmo quando a proposta de um licitante seja inferior a 75% do valor orçado pela Administração, o participante do certame tem o direito de justificar e comprovar seus motivos comerciais e a viabilidade de seus preços, de forma a preservar a vantajosidade econômica ofertada à Administração.

Em conclusão, apesar do “susto”, o TCU vem reafirmando a disposição da sua súmula 262, mantendo o compromisso de considerar como presunção relativa a inexequibilidade de preços, em boa sintonia com os objetivos e os pressupostos de um certame licitatório, com vistas à assegurar a seleção de proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajosa à Administração Pública.

Publicado originalmente no Migalhas.